Mergulhando no coração de pai

Coração de pai é feito de aço misturado com gelatina.

Enquanto algumas partes são encouraçadas, outras se mostram fragilizadas, trêmulas, cambaleantes. Intempestivas.

É órgão que por vezes esquece o caminho de casa, e se faz vagando pelos demais cantos do corpo com o discernimento de bêbado, com a lisura de drogado, com a majestade de uma barata-tonta.

Já, por outras vezes, incorpora o néctar da sensatez com todas suas asas, entranhas e querubins.

Coração de pai adora aplausos anônimos, fica feliz quando lhe orvalham carinhos, quando o untam de querer-bem.

Percebe ranhuras onde só caberiam sentimentos épicos, onde só repousariam as suaves anáguas da razão.

Identifica espiões onde apenas liberavam a entrada de aliados.

Coração de pai enfarta diante de chicotadas sem bula, e se desnorteia à frente dos desatinos daqueles que só deveriam ungir luzes de paixão.

Coração de pai escreve em várias línguas, é faroleiro que nunca foge do posto, mesmo quando todas águas teimarem em chutar pra bem longe.

Coração de pai, ao contrário das demais peças da engrenagem, não envelhece, não adoece e nem fica demente.

Quando todo entorno se disser opaco, com alma encurvada e sonhos puídos, ele entrará no palco e dará um show magnífico, para deleite de Deus, que ficará tonto diante da sua pirotecnia ofuscante.

Coração de pai se agiganta quando os dias se disfarçarem de desdém, fazendo enrijecer os versos mais rebarbados da sua varinha de condão.

Num belo dia, esse abnegado pedaço de carne e músculos entenderá que já não mais faz sentido amanhecer e alvorecer.

Perceberá que suas amarras enferrujaram, que os calos dos pés ficaram maiores do que o pé todo.

Já não precisam mais do seu colo, nem o chamam pra sentar num bar qualquer.

Aí cairá a ficha que sussurrará que seu pavio enrugou, coalhou, enferrujou, encalhou, empedrou. Que já era.

Que poderá ser jogado no lixão das almas com os demais entulhos que a vida, gentilmente, trouxer à tona.

Isso vai acontecer sem soar trombetas, sem pedir licença, sem acordar o mundo.

Então ele entenderá que não tem mais chão amigável pra cravar suas opacas pegadas.

E nem vértebra precisa pra pendurar seu remendado casaco de lã.

Nessa hora, os vãos do universo se escancarão, formando uma imensa cratera pra nela se atirar resoluto, desarmado e sem olhar pra trás.

Daí poderá decantar seu descanso honrado e merecido, pois terá cumprido o último gomo da sua redenção, o derradeiro suspiro dos seus dias.

Assim a última estrofe do seu roteiro estará alforriada.

Para sempre.

Oscar Silbiger
Enviado por Oscar Silbiger em 20/10/2018
Reeditado em 20/10/2018
Código do texto: T6481086
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