Quase que Machado de Assis dançava

 

Já era um galalau quando entrei para a escola-pública, em 1956. Cabe registrar: Escola Municipal Evangelina Duarte Batista, no bairro carioca de Marechal Hermes.

Meus pais, desatentos ao fato de que o meu aniversário caía no meio do ano, esperaram calmamente que eu completasse os sete de idade e só me matricularam no ano seguinte. Por isso mesmo, e crescido numa casa onde o livro era artigo de primeira necessidade, já lia até jornal quando a excelente professora Vera, no primeiro dia de aula, obrigou a garotada a encher páginas e mais páginas de caderno com as letras do alfabeto, um tratamento de choque que não poderia mesmo cair no esquecimento.

Fiquei muito puto com aquilo.

Não disse nada em casa, mas no outro dia, para evitar uma nova sessão de sadismo curricular, apareci com um livro de contos de Machado de Assis debaixo do braço. Na hora do recreio, em vez de ir brincar/brigar com os colegas no pátio, sentei-me estrategicamente numa mureta próximo à sala dos professores, o volume aberto sobre os joelhos. Quando D. Vera (sim, naquela época não se tratava professora alguma de tia) assomou à porta, entrei a ler em voz alta justamente a melhor peça da coletânea: "Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos..."

Isso mesmo, acertaram em cheio. Era o conto "Missa do Galo", aquelas sete ou oito páginas que valem por romances inteiros, uma lição de vida e de estilo.

Ela veio para o meu lado, arrancou-me a brochura das mãos, fingindo que não estava surpresa. Deu um sorrisinho maroto, fuzilou-me com os seus belos olhos azuis e disse:

"Por que não me avisou que já sabia ler? Vou te dar um tratamento diferenciado em sala de aula. Não vai mais encher o caderno com as letras do alfabeto, prometo. Vai copiar esse livro aí. Todo!!!"

Podem acreditar que está faltando ponto de exclamação.

Foi pedreira no início, mas depois, num gesto de rebeldia ou de anarquismo anunciado, resolvi que não ia copiar coisa alguma. Mandei um colega chamar minha mãe (morávamos perto da escola), e esta, filha de um enfezado Miranda de Trás-os-Montes, veio e acabou com a farra da bela professora.

Ainda bem que o velho Machado safou-se do risco de cair sob o meu ódio literário. Não daria outra, se o tivesse copiado como castigo. E até hoje adoro "Missa do Galo".

 

[10.9.2007]