A Linha Tênue entre Passado e Presente
Não somos o que temos, nem o que sentimos, somos aquilo que levamos na memória. Tenho uma teoria sobre a vida (e digo isso com base na minha) ser uma alternância singular entre estações chuvosas e dias de sol, não se pode fugir a regra, e aceitar isso não torna as coisas fáceis, digamos então toleráveis. Nada permanece estável por muito tempo e se permanece, algo estar errado. Sempre tive uma estranha impressão de que as coisas ao nosso redor têm o poder de indicar e nos preparar para os próximos acontecimentos de nossas vidas, reafirmando que nada é por acaso. Não que eu esteja procurando por sinais ao meu redor que indiquem o futuro ou coisa do tipo, mas eles seguem presentes, sutil e inconscientemente nos preparando para o que estar por vir ou as inúmeras possibilidades das próximas esquinas de nossas vidas. Na última semana um documentário que despertou minha atenção me deixou sem palavras durante os dias que se sucederam após assisti-lo. Grey Gardens, de 1975, retratava a rotina de duas mulheres, mãe e filha, que viviam em condições desumanas numa mansão no East Hamptons nos Estados Unidos.
Totalmente alheias as suas próprias realidades e agarradas ao passado como uma forma de sobreviver ao presente, aquilo era tudo o que elas tinham e do qual elas dificilmente abririam mão. A casa parecia uma representação fiel das memórias em ruínas e ainda assim a materialização de uma vida que um dia elas tiveram e que agora se amontoava em meio a fotografias, objetos empoeirados, matérias de jornais e revistas e a decadência do próprio imóvel quase engolido pelo mato que crescera a sua volta e que de alguma forma as isolava do mundo exterior. Grey Gardens era uma mansão assombrada pela vida de suas próprias habitantes. Curiosamente as duas, mãe e filha, possuíam o mesmo nome, sendo distinguidas pelo uso de Big ou Little a fim de determinar quem possuía o papel do adulto ou da criança. Mas ali estava Edie, figurando como uma única entidade que se dividia em dois indivíduos que de alguma forma se fundiram e se tornaram um só. E assim, até o final de suas vidas, aquelas mulheres viveram de suas lembranças, memórias daquilo que foram um dia e ressentidas pelo que ainda poderiam ter sido e que em algum momento determinante de suas trajetórias deixaram de ser.
Alguns dias após assistir Grey Gardens, recebi a notícia de que uma velha amiga sofrera um AVC. A notícia foi recebida com muito choro e dentro do que havia de sóbrio em mim: a decisão de não sofrer antecipadamente, não até vê-la e confrontar com a realidade aquilo que chegara até mim por via de terceiros. E então, lá estava eu, num corredor de hospital frente a uma maca quase esquecida no meio de tantas me deparando com a figura de uma criança tamanha era sua fragilidade. Ela dormia, e quando toquei sua mão ela acordou de um súbito levantar e sentou me olhando com um certo assombro. Perguntei se ela me reconhecia, ela afirmou com a cabeça, e por um momento acreditei. Tranquilizou-me ver ela, mesmo que frágil, respondendo da maneira que podia ao que eu lhe dizia. Saí de lá com um sentimento no peito que me afagava indicando que em algum momento tudo ficaria bem e esta situação seria somente mais uma passagem na vida. Hoje no entanto, visitando-a pela segunda vez eu já não encontrei a pessoa que havia visto ontem, em algum instante entre essas horas que separaram estas duas passagens, tudo o que acontecera ontem se foi e ela estava ali a não me reconhecer, e aparentemente a não reconhecer mais ninguém. Quis chorar, mas me mantive firme para não assustá-la nem deixá-la mais confusa do que ela já se encontrava. Encontrei-a ali da mesma forma que ela me encontrara quando eu era apenas uma criança: sabendo mais sobre ela do que ela mesma sobre si própria. E se na vida ter alguém assim sempre soou reconfortante pra mim, hoje eu percebi que existe uma linha tênue entre tudo o que compartilhamos.
Pensar que a memória dela se foi é pensar que parte de mim se foi com ela, parte da minha vida, daquilo que eu fui e de quem eu me tornei. Quatro anos atrás a situação era diferente: era eu quem estava assustado e era ela quem me visitava naquele mesmo hospital, validando que em um determinado momento os papéis se invertem e por vezes se fundem. Se Big e Little Edie se apegaram as suas memórias como uma forma de sobreviver a suas realidades, me sinto um pouco mais forte pelas boas lembranças que tenho e que me servirão para encarar esse momento e fornecer a ela o suporte necessário. Ela no entanto, não tem ao que se agarrar a não ser ao próprio desconhecimento de sua realidade e das pessoas que estão ali, lhe acompanhando durante os últimos cinco dias de um profundo renascer onde ela se tornara uma página em branco, flertando com a inconsciência.
“É muito difícil manter a linha divisória entre o passado e o presente”, afirma Little Edie em um determinado ponto do documentário, dando indícios de uma consciência que confronta por vezes as imagens documentadas. E quando não temos passado, o que nos resta se não nos agarrarmos a qualquer pequena representação daquilo que fomos um dia e seguirmos adiante dando as mãos a quem nos tornamos?