COCHICHOS NOS SILÊNCIOS

Desejoso de que o Absoluto provenha de tudo o que (talvez) mereça, o amigo poeta bissexto, há mais de ano morando numa prainha de cinco mil habitantes, anda num ritmo taciturno: placidez espiritual a fim de curtir a natureza nos canteiros, o silêncio dos sapos, das rãs e dos grilos; dos bem-te-vis, das andorinhas desgarradas das migrações, dos canários-da-terra, dos joões-de-barro, dos quero-queros, dos biguás, das garças dengosas; dos gatos nos telhados e alguns cães vadios e famintos de comida e cadelas no cio. Numa acentuação ritmada, o silvo compassado das ondas que cochicham ao vento e algumas manhosas dunas que alçam voo e teimam em tentar fazer cômoros no rastro dele. Vez em quando o céu se turva – como agora – e às abarrotadas cânforas derrama a bênção das chuvas. Mesmo que, por vezes, eu não compreenda e brigue com elas, porque excludentes do morno solzinho de que tanto gosto, ainda mais em período de invernias. E eis que a urbanidade entra em mim e o celular berra o seu desesperado cochicho global, tempo em que a minha gatinha Poliana, com preguiça, abre os olhinhos azuis frente à janela baça e me apercebo de que a vida imprime o seu bocejar úmido na vidraça. Também ela quer sair à rua e saudar com timidez a clausura do astro-rei. Do outro lado do vidro, Fumacinha, a outra, rebelde e medrosa, toda molhada, mesmo sendo felina, enfia o focinho na janela, me convidando a tomar um banho de chuva. Em meio a tudo isso, no silêncio da casa, Black, o gatão de sete quilos, sapeca e linguarudo em sua linguagem, chama a minha atenção para os pratos de ração vazios. O olho cego do monitor me olha de soslaio e compadecido me perdoa o desleixo de não saber exercer a paternidade responsável num dia insalubre. Ao longe, no canal de navegação, um navio emite a sua estridente linguagem, pedindo vaza para atracar em meio à intempérie e logo vai enfiando a proa em direção à barra. Vez em quando descubro que o silêncio apenas cochila em meio aos cochichos nem sempre perceptíveis aos viventes do lugar comum da vida, especialmente os que trazem entranhados na memória a algaravia ranzinza dos escapamentos dos carros e das buzinas, nas artérias nervosas da metrópole na hora do pique.

– Do livro inédito A BABA DAS VIVÊNCIAS, 1978/2018.

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