Cecília no domingo

Domingos de chuva em si carregam tons mais baixos na canção intitulada vida. E quando alguém especial resolve despedir-se em dias como esse, é provável que fiquemos inócuos, a observar o nada espreitado em olhares que não encaramos por querer. Foi assim que a vi: a encarar o concreto do chão em uma capela. Não pude dirigir-me até ela para expressar qualquer sentimento e as pessoas, que ali transitavam, pouca importância davam àquela mulher de olhos parados. E eu ao longe.

A cena acabou, aquela fotografia não durou mais que dez minutos, logo todos se despediram e foram para os seus destinos, assim como eu, assim como ela.

A persistir estava a chuva mansa, leve e fria. Eu abri meu guarda-chuva, xadrez em tons de azul e, com aquela infelicidade de ver-se correndo um risco, constatei que ele estava quebrado, mas não havia o que fazer, além de seguir meu rumo até em casa.

Na rua, a pouco mais de dez passos adiante, avistei ela outra vez. Que surpresa, não imaginava essa situação, ela vinha em minha direção. Com um guarda-chuva preto, ela triste estava e o sorriso amargurado emergiu quando me viu.

- Olá. - Disse-me, por fim.

- Olá.

- Sabe-me dizer onde encontro um orelhão? - Ora, não imaginava uma pergunta como essa. Estamos no ano de 2018, os poucos orelhões existentes já nem funcionam mais, no fundo essa pergunta realmente pegou-me de surpresa e eu não soube respondê-la de maneira adequada.

- Orelhão? Não sei.

- Puxa, preciso fazer uma ligação e sair logo daqui. - Pela expressão que ela tinha nos olhos, constatei uma certa urgência nesse pedido.

- Eu posso emprestar meu celular. Quer fazer a ligação? Qual é o número?

- Pode?! Muito obrigada! Meu número é 9255-2546. - Liguei e passei o celular para ela. Logo alguém do outro lado da linha atendeu e ela solicitou que viesse buscá-la. Agradecida, entregou-me o telefone novamente e disse:

- Esse lugar muito me entristece. Aqui perdi uma pessoa que muito amava e até hoje sofro sua ausência. Não consigo ficar muito tempo aqui, a lembrança me causa angústia.

Obrigo-me a fazer-me de entendido, embora pouco tenha captado dessa informação. Achei melhor não instigá-la mais, já que sua tristeza era quase palpável.

Por fim, disse:

- Seja como for, nenhuma perda é irreparável. Se estamos falando de morte, somos almas passando um período em um corpo físico, logo nos encontraremos diante do Amor. - Diante dessa minha colocação, ela lembrou de uma poesia e ao recitá-la pode confortar-se, bem como a mim:

- "Eu canto porque o instante existe

e a minha vida está completa.

Não sou alegre nem sou triste

sou poeta.

(...)

Sei que canto. E a canção é tudo.

Tem sangue eterno a asa ritmada.

E um dia sei que estarei mudo.

- Mais nada."

A sua carona chegou, despediu-se de mim com um beijo frio no rosto, mas com um olhar quente de quem lembrou de algo importante.

Continuei meu caminho, com o meu guarda-chuva quebrado a pisar em algumas poças. Nem me importava o pé molhado, sendo que a vida é tão breve. Cheguei em casa, tirei as botas e decidi-me por comprar um livro da Cecília Meireles.

Jéssica Orth
Enviado por Jéssica Orth em 03/09/2018
Reeditado em 03/09/2018
Código do texto: T6438619
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