Dora e Maria Bethânia

Em 1969 fui fazer um curso de credito rural em Fortaleza, na Direção Geral do BNB. Psssei lá três meses. Adorei Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção (fui outras vezes fazer outros cursos). Gostei - ainda gosto -dos cearenses, tirei de letra as diferenças deles com os pernambucanos. Acho que isso se deveu ao fato de ser sertanejo e sertanejo é igual em todo estado. Juro.

Nesse curso conheci um baiano, de Savador, um cara muito ligado na literatura (anos depois ele escreveu um belo romance). Nas horas vagas sempre conversavaco esse baiano tomando umas e outras, às vezes em bares ou nas praias, como a do Náutico e a do Futuro. O nome dele era Ângelo, pa partiu para a Bahia do céu. Ee sempre me dizia algo que achava surpreende: - Bicho, tem uma coisa ue nunca vou me conformar: a música "Maria Bethânia", de Capiba, um paraibano pernambucano, tinha que ter sido coposta por Caymmi. E a música "Dora", de Caymmi, devia ser da autoria de Capiba. Ele dizia isso co muita convicção. Ainda tentei argumentar que "Maria Bethânia" falava em engenho (fora feita para a peça Senhora de Engenho), que na Bahia os engenhos não eram uma marca registrada. Mas que, realmente, Dora era uma música pernambucana e que deveria ser de um pernambucano, á que se refere a Pernambuco, ao maracatu, à banda militar, enfim, o clima da musica é pernambucano e Caymmi compOs a música no Recife. Mas o cara não se conformava, dizia que o estilo de Maria Bethânia era de Caymmi e o de Dora de Capiba. Não coisa combinávamos: ambos conhecíamos várias mulheres que possuiam nomes por causa dessas músicas.

Sempre lembro desse colega que a partiu quando encontro duas amigas do sertão, Dora e Maria Bethânia, duas irmãs, ganharam esses nomes por causa das músicas, opai delas era músico da Banda de Música, tocava saxofone. Ontem me encontrei com as duas. São professoras aposentadas e ainda moram no sertão, mas os filhos residem aqui no Recife. Moram na cidade mas ainda conservam a fazendla que foi do pai delas. Sçao cultas, muito informadas e pessoas muito doces, mas duas sertanejas de brio que dizem o que pensam. Ontem depois de relembrarmos muita coisa, Dora me disse meia triste: - Cabra véio, tu lembra daquilo que eu sempre te dizia que era a coisa mais triste do mundo? A mais horrorosa e terrível? Nao me lembrei de imediato. Entao Beta esclareceu: - Ela tá falando da fome. E te lembrando que o mais feio, terível e horroroso da fome não é a magreza, vergonha do esfomeado em pedir esmola, nem a tragédia em si, mas o olhar do faminto. Quando se olha nos olhos de quem tem fome vemos algo horrível, fica gravado na nossa mente e nos envergonhamos de nós mesmos. Lembrei, ela sepre me dizia isso no tempo da fome no sertão, quando os esfomeados entravam nas cidades. Era muito triste, o olhar deles tinha um misto de tristeza, desespero, vergonha e revolta. Dora me disse: - Pois, cabra véio, a miséria tá voltando. E já se está notando aquele olhar dos famintos. Pararam as obras, o comercio está se reduzindo, o desmeprego aumentando, as pessoas se desesperando.... E Beta complementou: - É duro ver a misperia absoluta voltando e saber que aunica pessoa que podia reverter esse quadro, aquele que conseguiu reduzir e quase acabar a miséria absoluta está preso injustamente.

Ficamos ali mexendo os cafezinhos, tristes, nos despedimos mas ficou em nos três o olhar do esfomeado nos fitando. Quem duvidar doque estou contando me desminta e eu apresento as provas. Inté.

Dartagnan Ferraz
Enviado por Dartagnan Ferraz em 21/08/2018
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