MÚSICA, PASTEL E CALDO DE CANA
Na minha infância, duas situações marcaram profundamente as manhãs de meus domingos: os programas de música caipira que passavam na tv (minha mãe adorava) e as idas à feira, onde ganhávamos pastéis de vento. Naqueles dias que providencialmente caíam após o pagamento, às vezes ganhávamos um pastel de carne e em momentos de fartura à beça, até um caldo de cana era-nos permitido, e ficávamos (eu e meus irmãos - mas creio que meus pais também), inundados pelo acesso quase livre aos prazeres do paraíso gustativo.
Das músicas que preenchiam as ensolaradas manhãs, ficou tatuado em mim esse profundo respeito pelo cheiro de terra molhada e o aroma de café que emanam até hoje quando ouço Inezita Barroso, Trio Para Dura, Almir Sater, Irmãs Galvão e Pena Branca e Xavantinho. Ainda agora uma dor florida aliada a um repouso desassossegado ecoam em mim quando Belmonte e Amaraí cantam Saudade de Minha Terra. Ou rio desavergonhado quando Inezita despeja a Marvada Pinga em meus ouvidos. E o Cio da Terra então? Deveria ser tombada como patrimônio histórico.
Obras de arte são atemporais.
Pastel de carne e caldo de cana gelado também são obras de arte. Cada mordida ou gole é um sortilégio único que carregamos para sempre dentro de nossas lembranças afetivas. Morder um pastel hoje traz à memória cada detalhe vivido há 40, 30, 10 anos. Traz à tona o perfume salgado e quente de domingo passado. E cada sorvo no copo verde de bigodinho branco traz consigo o doce do açúcar de todo esse tempo, que passa, que fica, que mora na paisagem de nossa memória.
E se hoje a saúde inspira cuidados e exige certos comedimentos, não se trata de resmungar com o destino. Convém curvar-se à soberania desse tempo, que traz consigo o diálogo sempre antagônico e nunca concluído entre deus e diabo, o bom e mau, o bem e o mal, o crédito e a cobrança.
Esse talvez o mistério - portanto, a beleza - daquilo que orquestramos na vida: o tempo é uma sinfonia que carrega em si a brevidade que, com suas notas únicas, criam a ideia de eternidade, essa que estamos vivendo agora.