Balada Nº5 (a música nunca mais tocou)

Zeca havia acordado no meio da madrugada, o sono fora embora no primeiro beber de água. Tentou ainda fechar os olhos e dormir, mas tem noites em que até mesmo o próprio cansaço está sem sono.

Sentou-se na beirada da cama e ficou pensando em que poderia fazer para que aquela madrugada não fosse em vão. O quarto estava todo bagunçado, e isso foi o suficiente para acabar com qualquer vontade repentina. Vendo-se sem escolha, levantou-se e foi até a sala, mexer no computador.

Viu uma, duas, sete, 129 páginas, isso em pouco mais de nove minutos. Já enfastiado, decidiu se focar em vídeos. Sim, Zeca era um viciado em música. Clicou no botãozinho e logo explodiu um som na tela. Ficou atento por poucos instantes, e logo já estava cansado. Quando decidira desligar, olhou para um dos vídeos e viu uma imagem conhecida. Não podia ser, era um disco muito especial, músicas que o transportavam para uma época onde sua única preocupação era terminar o dia com ao menos 20 estórias vividas.

São Fidalgo das Conceições, 1975.

Bruno era o maioral no bairro. Todo mundo queria estar ao seu lado, e mesmo brigavam por sua atenção. Ganhava pães de graça na padaria, vez ou outra uma passagem de ônibus. Pediam-lhe conselhos e segredavam-lhe tudo. Bruno era mesmo um cara bacana.

A única pessoa a quem Bruno devotava a mesma atenção recebida era o seu irmão: Zeca. Com este não havia dia em que não recebesse um mimo, um agrado, um abraço de Bruno.

Mas Zeca gostava mesmo é de escutar seu irmão tocando o violão até de tarde. Bruno escrevia muitas músicas, sonhava em ir para a capital e viver disso. Lotando teatros, praças ou só mesmo sendo escutado por uma pessoa, sentada no meio fio da vida.

Na casa deles havia muitos discos, dos mais variados estilos. Os pais dos meninos, Clementino e Rosalina, eram loucos por música. Carregavam ainda o velho gramofone Phoko D´art herdado do avô de Rosalina. Nele, escutavam velhíssimas canções, e foi assim que Bruno começou a tocar.

Logo apareceu na casa uma vitrola nova, e junto uma porção de discos. Assim, passavam as tardes e noites em cantoria, todos eles. Nessas horas, a vida ficava lá fora, espiando pela janela de vez em quando. O som fazia com que as coisas girassem, e dessa forma todo mundo sentia-se pleno.

Dentre esses discos, um era especial. Bruno escutava-o sempre, todas as faixas, sempre na mesma ordem, exceto por um detalhe: uma delas, a de número 5, estava riscada. Todas as vezes, quando chegava nessa faixa, a música ia crescendo, lentamente. Os acordes abafados, um piano ao fundo, leve orquestração e um solo fabuloso, que chegava num ponto e... o risco. Sempre assim, naquela que parecia ser a melhor parte da canção. Zeca, muitas vezes, acompanhava o irmão na audição, sempre ficando maravilhado com o modo como aquela música fazia os olhos de Bruno brilharem.

Certo dia, pela manhã, seu Clementino não acordou. Os irmãos levantaram e puderam escutar o choro abafado da mãe. O enterro foi rápido, seguido de abraços, lembranças e uma rosa jogada sobre o caixão. Passado isso, venderam a casa.

Após dois anos, Rosalina também faleceu. Zeca já estava maior, Bruno planejara a sua ida para a capital. Com ele, foram todos os discos e a vitrola. Zeca, por sua vez, levou consigo a saudade e a lembrança heroica de seu irmão. Viram-se ainda algumas vezes, até que Bruno, num tolo acidente, partiu sem nada poder dizer.

Fonseca de Godofredo, 2015.

Zeca, ainda um pouco estarrecido, escutou o disco calmamente, até a faixa cinco. Nesta, antes de começar a audição, levantou-se e foi até o quarto. Abriu a gaveta da cômoda e de lá tirou um retrato de seu irmão. Voltou para a sala com ele entre as mãos e colocou-o ao lado do computador. Depois, sentou-se vagarosamente e deu um play. A música foi tocando. Lá estavam, o piano, os acordes abafados, a orquestração, o solo. Logo Zeca foi transportado para um daqueles dias em São Fidalgo, junto ao seu irmão, enquanto escutavam a música, aquela expressiva faixa número 5.

As notas foram se juntando, construindo uma parede sonora. O solo foi indo, subindo, ele não podia acreditar, após quarenta anos!, finalmente escutaria aquela canção por inteiro. O momento foi chegando, se aproximando e... foi horrível. A música simplesmente era uma porcaria a partir do ponto em que estava riscado. Tudo o que havia de belo nela transformava-se numa cacofonia infernal e intolerante. Zeca, irritadíssimo, levantou e desligou o computador com um tremendo chute. Nem viu se havia quebrado o aparelho.

Tomou outro copo d´água, mas agora pegou no sono. Aquela música nunca mais tocaria. Na fotografia, talvez Zeca nem tenha notado, mas Bruno parecia sorrir cinicamente.