Criador cruel
Todos os dias ao acordamos nos é reforçada a ideia da permanência: verificamos que ainda estamos ali. E muitas vezes até, diante do espelho, nem percebemos que mudamos alguma coisa. O que só acontece quando nos confrontamos com um retrato obtido já há um bom tempo.
A vida é um bem precioso, não há dúvida. Mas é também de uma beleza cruel. Porque pode nos transformar, de certo modo, em mitos de nós mesmos. Mitos com poucas chances, ou nenhuma, de desaparecer, embora saibamos, lá longe, que isso é inevitável.
E não há nada de errado nisso, nada de errado em contarmos com essa aparente “eternidade”. Quem desaparece é o outro. Nós, não. Continuamos ali. Tudo reitera essa ideia. Como é natural, não podemos ficar imunes ao que possuímos, construímos, almejamos e conseguimos. Família, bens materiais, obras de que natureza for. Que, se merecerem reconhecimento, este se torna maior se estivermos ali, à frente de tudo.
Portanto, seria, no mínimo, inoportuno ou um equívoco incontestável se tivéssemos tempo para perceber que um dia nada restará do que fomos, mesmo que seja a menor fração do corpo que tivemos. E ainda que pensemos que nos perpetuamos em nossas obras, pode ser que cada vez mais falem delas, porém certamente falarão menos de seus autores. Para nós hoje sombras do que conseguiram produzir. E que, segundo a força do hábito, se transformaram em nomes de fundações, institutos, cidades, parques, avenidas ou outros logradouros. O que reforça a ideia de que esses seres maravilhosos foram embora, mas nós continuamos ali.
Nesse sentido, o Criador poderia ser tido como cruel, ideia a ser repelida com vigor pelos mais intransigentes religiosos. Porque sempre soube que nos afeiçoaríamos de forma natural à vida, deplorando o sentido que possa ter a morte. Ou será que não usou da maior sabedoria para nos dar a oportunidade de perceber que os dois momentos possam ter exatamente o mesmo sentido?
Rio, 09/02/2018