A arte de fazer doces e recomeçar

Ela tem mãos de fada, como diria minha vó. Faz doces como poucas. E impressiona o zelo e prazer com que se posta à frente do fogão, como que numa missão sagrada.

Touca na cabeça, mãos lavadas de tempos em tempos, a cozinha impecavelmente limpa, as vasilhas em seu devido lugar, como se ali tudo fosse para enfeite. Perfeita ordem, peças alinhadas, vista agradável aos olhos. Dá vontade de morar.

A impressão, para falar a verdade, é que a casa é de boneca, tamanho o zelo com que passadeiras de crochê e panos caprichosamente marcados enfeitam os móveis antigos sem nenhuma poeira aparente. Cheiro de limpeza. Lembra a casa das avós mais caprichosas e prendadas.

E prendada realmente é uma palavra que cabe bem. Marca e faz crochê com tanta habilidade que as mãos parecem não depender dos olhos, já cansados, para tarefa tão difícil à vista de leigos que apenas apreciam um belo trabalho manual.

Diz que dedica pelo menos sete horas por dia à atividade porque depende dela para sobreviver. E talvez dependa, que a pensão deixada pelo marido perdeu o poder de compra faz tempo.

Mas o prazer com que se dedica a linhas e agulhas encanta. A tarefa parece uma desculpa à necessidade financeira. Gosta de marcar novos desenhos, arriscar novas cores e produzir peças deslumbrantes, cada dia mais perfeitas.

As passadeiras e bicos de crochê também são famosos. Sem defeito, dizem os clientes mais exigentes, que compraram dela o próprio enxoval e hoje o fazem para filhos e netos.

Tanta dedicação haveria de merecer um descanso. A atividade deveria ser para as horas vagas, de lazer, que as mãos já estão comprometidas por artrose, apesar do amor de uma vida pelo artesanato que a alimenta, em todos os sentidos.

Mas nada de descanso, que ainda há quem busque a perfeição de suas obras. Quanto aos doces, que também faz regularmente, são um prazer à parte.

Primeiro porque não fica sem doce, e sempre tem algum na geladeira, com cravo e canela, para dar um toque artesanal.

Nada de doces industrializados, que tem talento de sobra para preparar os melhores, sejam eles de mamão, abóbora, coco, laranja cidra, morango, figos ou qualquer outro que a imaginação e memória afetiva desejar.

E em segundo lugar, que visitas recebidas numa casa tão aconchegante merecem o carinho de uma delícia preparada por ela, que faz questão de servir as guloseimas que produz.

A vida para a mulher de mãos de fada não é fácil. Pelo que sei, nunca foi. Mas ela optou por torná-la doce e encantadora, através dos trabalhos que produz. Escolheu recomeçar a cada manhã.

Talvez não conheça os poetas, embora faça de sua atividade belos poemas visuais. Quintaneando, “nada jamais continua. Tudo vai recomeçar”. Como diria a também doceira e talentosa poeta Cora Coralina: … Recria tua vida, sempre, sempre. Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça…

Anete Lacerda
Enviado por Anete Lacerda em 19/01/2018
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