Velho Mar

_31/12/2017_

_21H14MIN.

Noite.

Na quase completa escuridão, tudo que ouço é o marulhar das ondas sob o casco de meu velho barco de pesca e o suave barulho da àgua fundida pelo meu remo. Alguns fogos já espocam ao longe, antecipando a meia-noite do novo ano.

Solidão.

Olho as luzes ao longe na terra, vejo a cidade que deixo para trás, enfim. O mar, meu velho amigo, me chama.

Solidão.

Assim de longe, as luzes parecem estrelas no chão. Olho para o céu, ele está negro, carregado. Paro de remar, coloco o velho remo dentro do velho barco e acendo meu velho cachimbo. Um ponto vermelho no escuro. Tudo é velho, eu sou velho, mas nem sempre foi assim, lembro-me de minha meninice, de quando conheci o mar. Ah... O velho mar.

Ele, claro, estava aqui antes de mim, quando cheguei. Aprendi com ele, me mostrou o outro lado da vida. Eramos um bando de moleques que nunca tinham visto tanta água. Só um que já tinha visto e que nos mostrou. Quando ficamos parados de boca aberta olhando aquele mundo de água, ele ficou parado sorrindo orgulhoso como se o mar fosse dele.

_21H47MIN_

Solidão.

Mais fogos. A distancia não é muito grande, ainda posso ouvi-los atrasados, sinal que estou me afastando da terra, mas não estou remando. Vejo as luzes da terra tremeluzirem de acordo com o balançar das àguas calmas.

_Aqui está bom. Verei os fogos daqui.

Só então percebo que meu cachimbo está apagado.

_22H00MIN_

Pego o isqueiro e o acendo novamente, mas logo tenho um acesso de tosse. Retiro-o da boca, observo-o um istante: Antes eu não precisava. Jogo-o com força nas àguas já não muito calmas do velho mar, vendo-o se apagando e assim desaparecer.

Levanto-me e viro as costas para as luzes da cidade e dos impacientes fogueteiros. Olho para o horizonte escuro, para a vasta imensidão. De súbito o céu clareia-se num relâmpago, respiro fundo. É imprensão ou o velho mar está agitado?

Liberdade.

A mesma sensação...

Aquele bando de moleques olhando o mar.

Primeiro contato... Nadando na praia...

Pesca no raso...

Então a primeira navegação ao mar aberto, ainda moleque. Quando caira na àgua...

Pegaram aquele mesmo barco e sairam para pescar numa noite como aquela. Céu escuro, relâmpagos...

Junto com outros dois pescadores experimentados. Com uma sensação incrível de liberdade no peito, fugindo à todas responsabilidades.

Então na volta, a tempestade...

_22H30MIN_

Já novamente sentado no barco, suspiro perdido em lembranças. Levo a mão num gesto costumeiro ao bolso da camisa para pegar o cachimbo. Um ponto vermelho na escuridão...

Jogo na água o isqueiro, já que não mais precisarei. Olho a cidade ao longe... Posso ouvir alguns fogos, mas a real queima começará em breve, espero. Uma onda bate no casco do velho barco espirrando àgua em meu rosto, gosto de sal... Como a vida, puro sal, acho que o sentido da vida é lutar para torna-la temperada. Não muito doce, para não se tornar enjoativa, nem muito salgada para não tornar-se desagradável.

Sal, vida...

Já estou até filosofando. Acho que é coisa de velho.

_23H00MIN_

Sal... Ainda me lembro do sal...

Na volta a tempestade. Quando caira na àgua...

O barco era lançado de um lado para o outro por ondas furiosas, os pescadores lutavam com o remo e então, caira e fora engolido pelas ondas.

Sal...

Então quando voltara a superfície, num clarão de relâmpago, viu ao longe o barco lutando para não ser tragado também. Então foi puxado novamente para baixo...

Escuridão... Sal...

Então lá embaixo, tudo era calmo, podia ouvir as ondas fortes acima rugindo. A àgua agitada batendo forte num casco, podia ouvir.

Novamente à superfície. E estava incrivelmente perto do barco novamente e foi içado a bordo cuspindo àgua, ofegante.

Saira da àgua diferente, sentidos aguçados como nunca foram; talvez por ter estado tão perto da morte. Quando voltou à terra, já não era o garoto que caira na água; era um homem formado pelo sal.

Sua meninice já era passado distante.

_23H30MIN_

Liberdade...

Mas alguns fogos distantes. Respiro fundo novamente. Agora sei porque o moleque ficara orgulhoso ao nos mostrar o mar.

Liberdade.

O barco balança mais agitado, as luzes ao longe tremulam mais. Logo começará a queima, em breve espero, pois já sinto água nos pés. O velho barco está acabado, relâmpagos clareiam o céu, uma tempestade se aproxima. Não dá mais para voltar à terra.

Solidão.

Logo começará a queima grande. Logo começará um novo ano, esperanças, sonhos, sei lá. Mas quero ver a mudança daqui. No velho mar, no velho barco, o velho remo... Pego-o novamente, talvez consiga voltar, mas para que?

Já tem bastante àgua no barco, o mar está bastante agitado, preciso me equilibrar. Minhas mãos estão trêmulas, o remo me escapa e cai na àgua. Ergo-me de pé, correndo o risco de cair, respiro fundo e olho a cidade ao longe.

_00H00MIN_

Vejo emocionado quando num único momento, parece-me que luzes erguem-se do mar e da cidade ao longe e explodem em mil cores como numa despedida.

No velho mar, num velho barco, um velho remo perdido e eu, um velho pescador...

Tudo é velho.

Gosto de sal...

Por que choro?

Pelo passado perdido.

_01/01/2018_

Naquela vez, quando voltei à terra, já não era mais um menini, mas um homem formado pelo sal.

Será se eu cair novamente na àgua eu sairei um menino?

Forasteiro
Enviado por Forasteiro em 17/01/2018
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