METADE

Parte de mim escrevendo estas palavras agora, suplica, aos gritos, para que eu me desfaça de todas as armas que fui colecionando ao longo dos anos, todas que construí por excesso de insegurança e mais outro tanto que guardei por achar que um dia precisaria. Armas estas, que eu, sinonimamente, chamaria de rancores. Ou quem sabe, para maior aceitação do ego, mágoas acumuladas.

Passei muito tempo me limitando a sentimentos que julguei não ser mais possível sentir, por nem ao menos, ser merecedora de tal. Estagnei em uma linha tênue que me impunha distância a esse mundo de afetos, denominado bons, que me separaram de tudo o que fui um dia, que hoje, me esforço para ser.

Dentre todas barreiras que construí em volta do que eu ainda chamo de coração, pelo menos meia dúzia delas vêm se desmoronando a cada amanhecer, em cada pulsar, a cada batida que intensamente ele se esforça a conseguir. Como se estivesse me alertando que talvez, seja hora de acabar com todas as entraves que restringiram tantos momentos que resisti em não persistir.

Eu, que nunca fui muito de ouvir esse tal de coração, ao me silenciar por míseros minutos com a cabeça debaixo daquela água quente que inundava todo meu corpo no chuveiro, consegui atentar-me ao choro de criança que ele, minuciosamente se deliciava, em estar sendo percebido pela primeira vez. Não sei exatamente o que aconteceu ali, mas obedeci, calei-me e deixei que aquela prantina invadisse e não só quebrasse os muros envoltos dele, mas que adentrasse minhas veias e me pegasse no colo para ninar.

Tentei, baixinho, esconder aqueles gritos que a alma expulsa toda vez que os olhos vermelhos e ardentes, jorram descontentamento em forma de gotículas salgadas. Falhei na missão quando lá no fundo, uma voz serena e inibida, pedia: “Deixa lavar. Deixa esvaziar. Deixa limpar”. E então, eu cedi... Eu permiti.

Perdi o controle do jogo que mantinha comigo mesma, quebrei todas as regras que delicadamente me obriguei a seguir. Soltei, a gritos, todo o amontoado de estilhaços que cortavam minha garganta todas as vezes que tentava protestar contra a razão. Deixei que o peso do mundo me prensasse contra o chão e me fizesse sentir o chão frio queimar as feridas mal curadas.

Suspirei. Que culpa eu tinha?

Parte de mim escrevendo estas palavras agora, se aquieta encolhida, cabisbaixa e temerosa, sem pedir nada, sem queixar-se da demora, só sente, só olha. Não se enraivasse pelo acúmulo entalado na garganta, nem ao menos pelos silêncios não explicados. Como se afirmasse: “Está tudo bem! Qual é, está tudo indo muito bem! Para quê mexer na única coisa que ainda permanece intacto?”.

Apaguei da memória os últimos ressentimentos que vieram à tona no desmoronar de três das seis barreiras que me protegiam, guardei o resto por me fazerem ser quem ainda sou, e me manterem de pé, com o intuito de escudar a montanha de emoções que esperançosamente parece restar por aqui.

Metade de mim é autossuficiente.

A outra metade prefere acreditar que sim.

Ana Thomazini
Enviado por Ana Thomazini em 16/01/2018
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