Mulher macho

O mundo feminino é, desde a infância, muito diferente do mundo masculino. Eu transitava entre os dois mundos sem entender seus limites. Nunca aceitei que menino brinca com carrinho e menina com casinha; que menino joga futebol e menina pula elástico; que menino, quando está com raiva, vai de soco no outro e menina chora. Não estava clara para mim a divisão de papéis. Embora fosse muito magrinha e vivesse tossindo por conta de uma bronquite que não me dava tréguas, eu gostava de me aventurar. Era o gosto pelo desconhecido, pela experiência, que me levava a cruzar os limites entre um mundo e outro. Jogava vôlei, esporte de menina, mas os meninos me perguntaram:

- Não quer experimentar jogar no gol? Está faltando um para completar o time.

- Nunca joguei futebol.

- Experimenta.

Descobri, logo no primeiro jogo, que eu era boa no gol. A prática do vôlei fez desenvolver meus reflexos. Não entrava uma bola. Meu time me olhava confiante. Dos dois lados, apenas eu de menina. Já ganhávamos de oito a zero, quando meu time fez um pênalti. Os meninos chegaram juntos pra conversar comigo:

- Cinara, deixa a gente defender.

- Por quê?

- Porque vai ser bolada. Ele vai bater com força, pode te machucar. Você sabe: você é menina.

- Não, deixa bater. Manda bater a bola. Eu fico. Joguei até aqui, agora vocês querem me tirar do gol. Não, manda bater. E se entrar, qual o problema? Estamos ganhando de oito.

Os meninos voltaram para o campo e fizeram sinal com a mão para o jogo prosseguir. Mas o atacante já furioso porque seu time perdia, ficou ainda mais nervoso e quis jogar a culpa em mim:

- A gente fica com medo de chutar a gol e machucar a goleira de vocês e, assim, nosso time está perdendo. Se vocês não tirarem esta menina do gol, vocês serão responsáveis. Vou meter bolada, não estou nem aí! Não venham me culpar porque machuquei o peitinho de sua goleira!... Vou bater com força!

Me lembro até hoje do nome do menino: Ebinho. Ele, realmente, chutou para tentar virar o jogo. A bola veio no canto da trave, difícil de defender, mas eu a espalmei. O time foi à loucura! Não perdi a oportunidade:

- Da próxima vez você tenta de novo. Quem sabe você acerta.

Ele olhou para mim com ódio no rosto. Naquele dia, o nosso time ganhou de dez a um e eu experimentei, pela primeira vez, o gosto de “destroçar” o adversário e ir embora para casa abraçada com os meninos, fazendo a maior festa. Quem não gostou nada de me ver chegando com os meninos, pé no chão, suada, suja de terra, cabelo pregado na cabeça, foi minha mãe.

- O que é isso? Onde você estava com estes meninos?

- Jogando bola.

- Jogando o que?

- Bola. Qual a maldade em jogar bola?

- Menina jogando bola com menino? Vou falar para seu pai.

À noite, meu pai veio me explicar a divisão de papéis:

- Minha filha, você é uma menina. Não me dê essa decepção. Eu queria uma filha limpinha, de vestidinho, arrumadinha e não andando com uma turma de maloqueiros. Pior do que isso, jogando bola com maloqueiro! Esses meninos do Ferroviário são todos maloqueiros. Não era nem para você falar com eles. Você ainda vai jogar bola? Quando sua mãe me contou, eu não acreditei! Eu disse: não, por favor, não me conta isso. Não diz que minha filha virou mulher macho. Eu queria você feminina, ajudando sua mãe em casa. Olha que decepção: você na rua, descalça, suja de barro, rolando no chão atrás de bola. Não, meu Deus, eu não quero acreditar.

Meu pai fez um drama tão grande que, realmente, conseguiu que eu me sentisse como se tivesse praticado um crime hediondo. Falou tanto que pensei em continuar somente com o vôlei, nem olhar para o futebol. Mas depois do primeiro jogo, depois que o nosso time ganhou de dez a um, os meninos me elegeram como goleira oficial. Qualquer partida, apareciam na porta de casa:

- Estamos contanto com você no gol.

- Meu pai fez um escândalo. Vocês nem imaginam o escândalo.

- Cinara, ninguém gosta de jogar no gol. E você é ótima no gol! Seu pai nem precisa ficar sabendo.

- Sim, mas a minha mãe vai ver vocês aqui e eu estou lascada.

- Então, vamos embora antes que ela veja.

Meu pai não ficou sabendo das outras partidas de futebol, mas tomou conhecimento da briga que tive com César. Não lembro o que César fez que provocou o meu ódio. Lembro apenas da cena final, o desfecho que levou a outra situação de conflito com meu pai. César me chamou na divisa do terreno. Naquele tempo, as casas não tinham muro e a do César não tinha nem calçada. Era terra pura. Ele cuspiu no chão e fez um traço na poeira com o pé:

- Pisa aqui se você for mulher.

A frase já era uma inversão de valores. Tradicionalmente, mulher não precisa provar que é mulher. Apenas homem precisa demonstrar coragem. Mas menino, com raiva, estava se lixando para as convenções sociais. Repeti os gestos de César: cuspi no chão e fiz um traço com o pé na poeira:

- Pisa você primeiro se for homem.

Não preciso dizer que a molecada do Ferroviário já estava reunida em círculo para assistir a cena. Torcida dos dois lados. Não era possível recuar, ficar com medo, sair correndo. Naquela hora, eu sabia que ia apanhar, mas não tinha escolha. Nunca tinha participado de uma luta antes. Não possuía experiência. Não sabia nem dar um soco. Tentava intimidar César e fazê-lo recuar, afinal ele era magrelo e baixinho. Podia ficar com medo e desistir, mas não foi o que fez. Me desafiou de novo:

- Eu falei primeiro. Está com medo? Pisa aqui se for mulher.

No mesmo tempo em que pisei no cuspe, que ainda não tinha secado, fui com as duas mãos no peito dele. Ele caiu da altura em que estava, mas me puxou junto. Rolamos na poeira. Ele me socava a barriga e eu metia o murro aonde dava conta. Nunca apanhei tanto. A molecada fazia a festa. Ninguém para separar. Não me lembro como a luta acabou. Acho que cansamos de bater um no outro. Levantamos do chão e fomos embora xingando. E a briga de meninos teria terminado aqui se adulto não tivesse entrado na história. À noite, o pai de César esperou meu pai chegar do trabalho, sentado na porta de sua casa. Quando viu meu pai, o chamou para conversar:

- Sua menina brigou com o meu menino. Não sei se você está sabendo.

A conversa foi séria. Tão séria que meu pai nunca mais falou com o vizinho. Anos mais tarde, ele se mudou sem que meu pai lhe dirigisse a palavra. Mais séria, ainda, foi a conversa do meu pai comigo:

- Não bastasse jogar futebol. Agora Cinara também briga com menino. Briga de rolar no chão! Que vergonha! Eu vou prevenir você, Vanilde. Nossa filha, só vai nos dar decepção. Nunca vai nos trazer orgulho. Vai ser mulher macho.

Meu pai não sabia que dessa forma eu me preparava para entrar no mundo do trabalho, num mundo de regras masculinas e pouco espaço para valores e sentimentos femininos. O mundo do trabalho, durante tantos anos, ocupado apenas por homens, tem suas regras particulares. Há o momento de equipe, de sentimento de grupo, de prazer em pertencer ao time e da lealdade e amizade, mas também há o momento do olho no olho, da porrada, de mostrar coragem. Não ocupamos espaços masculinos, com pruridos femininos. Ao contrário do que ele profetizou, fui, entre os seus filhos, a que mais lhe trouxe realização: me formei, consegui emprego estável, tornei-me independente financeiramente e constitui minha família. O futebol, as brincadeiras e brigas com os meninos, não definiram minha sexualidade. Não me fizeram mulher macho como ele disse que eu seria. A sexualidade não tem nada a ver com as convenções sociais. Gostava de praticar esporte, como até hoje pratico. E não gostava de levar desaforo para casa, como até hoje não gosto.