A procura

Estou triste, lembro do noticiário. Penso na mãe deixando o carro com um filho no braço enquanto assiste a filha de nove anos morrer. Penso nas 2.400 pessoas assassinadas no Rio Grande do Norte e nas outras 5 mil em Pernambuco. Penso nas 200 mil pessoas por ano assassinadas no Brasil. Cada uma, uma vida, uma família. Me entristece o Brasil, que parece sem solução. Entro no carro e saio para comprar um armário. Poderia ser qualquer outra coisa: um lápis, um livro, um botijão de gás. Teimo em comprar um armário e saio a procurar. Vou longe. Distancio 20 km da minha casa. Quanto mais longe melhor. Queria fugir do Brasil. Um avião. Portugal. Encontro a loja de armários. Sem propósito pergunto o preço. O dia está triste. Nublado. Tão triste quanto a mãe que amanheceu sem a filha. “Saudade é arrumar a cama do filho que já partiu”, disse o poeta. A mulher solícita me explica tudo sobre decoração. O armário não pode ficar ao lado do sofá. Retira o brilho do sofá. Tudo que é fútil é tratado de forma tão séria, tão precisa, e tudo que seria sério não é mais. Não é sério viver. Viver não é sério. Mudo de loja e pergunto por outro armário. Que importância tem o armário?! Pergunto a esmo. Até que de loja em loja encontro um senhor. Ele tem mais de sessenta anos. Puxa a cadeira. Pede para eu sentar. Pergunto se é ele quem faz os armários. Ele me explica que aprendeu com o pai, que exigiu que tivesse uma profissão.

- Acho que todos deveriam aprender um trabalho manual. Os jovens passam o dia em frente a computadores quando não estão vadiando. Precisamos do trabalho manual, tanto quanto, do intelectual. Jesus era carpinteiro.

- Não precisaremos mais. Você sabia que o trabalho é desnecessário?

- Esta é uma hipótese que me assusta.

- Hoje, já poderíamos fabricar tudo que quiséssemos, temos tecnologia para isso. Mas as empresas que dominam as patentes não deixam que as invenções, que poderiam nos garantir uma qualidade de vida melhor, sejam fabricadas.

Então ele me explica do forno de microondas que em vez de forno imprimiria tudo que precisássemos, transformando energia em energia agregada. Por um minuto acho que isso seria muito chato.

- Do que nos ocuparíamos?

- De viajar pelo espaço! Teríamos o universo inteiro para conhecer e ensinar como chegamos ao atual estágio de nossa civilização.

- O senhor não acha nossa civilização um pouco absurda para servir de exemplo a qualquer outra civilização?

- Sim, no estágio em que nos encontramos a nossa visão é limitada. Vivemos um mundo tridimensional. Mas você se lembra que em 2012 houve o fim do mundo?

- Sim, me lembro. E foi aquela decepção porque ele não acabou. Todo mundo frustrado. Nem um sinal de aviso no céu. Nada. Nadinha.

- Não, engano seu. O mundo acabou.

- Mesmo? E o que a gente está fazendo aqui? Olha o senhor é a primeira pessoa lúcida com quem converso nos últimos dias. Vou confessar: eu tinha mesmo esta impressão. O mundo acabou e ninguém disse nada.

- Depois de 2012, o mundo tridimensional que conhecemos acabou. Agora entramos no mundo com cinco dimensões. Todas as pessoas que não se prepararam para viver o mundo penta dimensional, vão ter que deixar a Terra.

- Quantas dimensões existem no universo?

- Infinitas.

- Mas nós estamos na terceira dimensão?

- Sim, por enquanto. Pois, como disse, a possibilidade para a quinta dimensão já foi aberta. Em sonho, podemos conhecer quatro dimensões.

- E Jesus Cristo? Ele também era um ser tridimensional?

- Não, ele está na oitava dimensão. Quanto chegarmos a quinta, poderemos fazer muitas coisas que Jesus fazia. Veja que ele multiplicava os peixe e o vinho. Como lhe disse, poderemos produzir o nosso alimento, não precisaremos matar outros seres vivos. Mesmo as plantas são seres vivos e sentem. Eu sou vegetariano e achava que não estava matando um ser vivo. Engano. As plantas sentem quando são arrancadas ou quando cortamos suas folhas. Todos os seres vivos possuem alma. Não somos um corpo com alma. Somos alma num corpo.

- Sabe que eu nunca tinha olhado desse ponto de vista. Mas se Jesus está na oitava dimensão, e Deus?

- Deus está na 12ª dimensão. Este Deus que nós conhecemos está na 12ª. dimensão. Há infinitas! Fomos nós que quisemos vir a este mundo. Não foi uma decisão de Deus, foi uma decisão do homem. Ele quis se equiparar a Deus. Ele quis buscar o seu próprio crescimento e precisará se preparar para isso.

- Vejo que seu mundo está organizado. Há uma hierarquia que chega ao nível divino. Há ordem. Etapas. Evolução. Racionalidade. Obrigada, por suas palavras. Vou pensar no que me disse. Suas palavras me servem de alento neste momento em que tudo parece tão decadente.

- Quando estiver muito nervosa, respire fundo. Você sabe o exercício da respiração?

Faço o exercício da respiração, mas ele me corrige: “É preciso respirar com a barriga!”. Agradeço novamente. Agradeço suas palavras, sua fé, seu perdão, por me convidar a pensar num mundo onde tudo está organizado. Vou embora, ainda, não encontrei o armário.

Chego ao shopping. Preciso almoçar, antes de visitar outra loja de decoração. Arrumar minha casa me faz feliz, mesmo quando o dia está nublado e ameaçando chover. Peço um risoto na praça de alimentação. Tiro minha caderneta. Anoto as palavras do senhor. Me pergunto se ele era real. Acho que vou voltar à loja e, provavelmente, me dirão que aquele senhor não existia:

- Não, nunca trabalhou ninguém com esta descrição.

Um senhor pede licença para sentar a mesa ao meu lado. Pergunta se não tem ninguém.

- Não, fique à vontade.

Meu risoto ficou pronto.

- O senhor guarda minha mesa enquanto pego meu almoço?

- Sim, claro!

O diálogo foi suficiente para estabelecer uma relação de confiança com o desconhecido. Não éramos mais desconhecidos. Eu fizera a gentileza de lhe ceder um lugar à mesa e ele retribuía, guardando a mesa enquanto eu buscava o risoto no balcão.

- Onde o senhor trabalha? Pergunto.

- No Senado.

- Somos colegas. Também sou servidora federal. Trabalho no FNDE, uma autarquia do MEC. Eu acho o Senado escuro e frio. Um clima carregado.

- Você tem razão, o clima é muito carregado por conta das pessoas que trabalham lá. Políticos possuem uma energia muito negativa. Não sei se você possui uma religião, mas eu sou cristão. Acredito que somos energia.

- Tenho um amigo que também acha que tudo é energia e que surgirá uma máquina que vai condensar energia, como um forno de microondas. Mas eu não chego a tanto. Acredito que há energia positiva e negativa. O Senado tem uma energia muito negativa e eu sinto isso quando visito o prédio.

- Mas você não está errada, a energia é mesmo negativa. Os políticos só pensam em dinheiro, não pensam em pessoas. As criaturas da escuridão estão lá. Não duvide: existem Deus e o demônio! E os demônios estão lá! Agora, eles andam um pouco preocupados com a Lava Jato.

- Quem? Os demônios?

- Não, os políticos. Mas tudo é a mesma coisa.

- Claro! Mas o senhor acha mesmo que eles estão preocupados com a Lava Jato?

- Sim. Pela primeira vez, eles temem ser presos. A Lava Jato os deixou assustados.

- A Lava-Jato nos assusta, mas não nos transforma. Todos estão assustados. As pessoas comuns porque nunca imaginaram, nem no pior dos seus pesadelos, que a corrupção no Brasil chegasse às raias do absurdo. Que havia desvio de dinheiro público todos sabiam, mas não que alcançasse o volume que a operação Lava Jato revelou. Os políticos, por sua vez, também estão assustados porque foram descobertos. Mas a operação Lava Jato se ela assusta, não nos transforma. A solução dada pelo brasileiro para o problema é velha. A solução que encontra para a corrupção é a volta da ditadura militar ou a ditadura de esquerda. Ninguém defende reformas: educacional, política, administrativa. Querem o velho de volta: a ditadura militar ou o populismo de esquerda. Por essa razão, a Lava Jato não nos empurra para o momento novo, ela nos joga de volta aos nossos velhos conhecidos, os nossos fantasmas da escuridão política.

- Como disse Charles de Gaulle: “Le Brésil n’est pas un pays serieux”. Enfim, não há saída para o Brasil.

- Sim, há. A única saída é deixar o Brasil. Deixar o Brasil ser o que ele quiser ser. Entregar-se a inevitabilidade de sua história e de seu destino.

Meu amigo me diz que prepara as malas para ser professor na Costa Rica. Fluente em francês e inglês, pretende aposentar-se do Senado e complementar a renda com aulas. Não retornará ao Brasil, senão para visitar os filhos.

- Também estou me preparando para deixar o Brasil. Não deveria estar procurando um armário, pois este é o momento de esvaziarmos os armários. Não sei a conclusão que o senhor chega depois de seus anos de vida, mas a minha é que não adianta remar contra a maré. Ela nos vencerá sempre. Então, vamos com a maré. Deixa o Brasil ser o que ele deseja ser: uma ditadura, não importa se de direita ou de esquerda. Para mim, é a mesma coisa, como os demônios e os políticos.