Consumidor de futebol
Jadir, Dequinha e Jordan, esse era o trio médio do Flamengo aí pelo final da década de 50 e princípio de 60. Do século passado, é claro. Os fanáticos (no caso, Flanáticos) sabiam a escalação de cor, porque os jogadores se mantinham no mesmo clube, ano após ano. As substituições eram raras, acontecendo por contusão ou aposentadoria. Da turma nascida nos anos 50, 60 e 70, mesmo sem ser torcedor, quem não sabia recitar de cor o avassalador ataque do Santos? Dorval, Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe. Ou do Botafogo? Garrincha, Didi, Quarentinha, Amarildo e Zagalo.
Não havia janelas de transferência, a lei do passe era diferente, prendia o jogador ao clube e era comparada à escravidão. Pode haver razões trabalhistas e econômico-comerciais que expliquem as razões dessa mudança e que elas sejam bem óbvias para os especialistas, mas não é o momento aqui para aprofundar o tema e escrever um ensaio comparativo sobre o mercado da bola de hoje e de outrora. O certo é que era daquele jeito. E ponto.
Pois bem. Do ponto de vista do torcedor, os tempos mudaram radicalmente. De um amigo, ex Fluminense Futebol Clube, o pitanguiense e meu amigo de infância, Dimas Oliveira, o Diminha, ouvi que se considera não mais um torcedor, mas, sim, um “consumidor de futebol”, conceito que lhe transmitiu um amigo. Eu acrescentaria que é também um degustador, um torcedor-gourmet, quem sabe, porque a paixão passa a um segundo plano. Não assiste a qualquer partida nem se prende à agenda do time do coração, que hoje é o Cruzeiro de Belo Horizonte.
Nessa nova abordagem, o consumidor-degustador de futebol escolhe uma partida da Champions League, for example, e pode até “torcer” momentaneamente por um Real Madri, um Bayern, um Juventus, um Barcelona, PSG, mas o que importa é o prazer estético e a emoção momentânea que aquela partida pode lhe causar. Essa ligação passageira, no entanto, pode transferir-se na semana ou mês seguinte até para o rival, basta que a mudança lhe traga mais prazer.
Aliás, digno de nota (prova disso é o Dimas) é o fenômeno que ocorreu no futebol mineiro depois do advento do Mineirão, inaugurado em 1965, e da ascensão de Cruzeiro e Atlético no cenário nacional. Cidades como Pitangui, de torcidas de clubes cariocas, passaram em poucos anos a torcer pelo binômio Atlético-Cruzeiro, enquanto só alguns desgarrados como eu se enamoraram do América. E, diga-se de passagem, meritório campeão da série B em 2017.
Voltando ao momento atual e ao conceito encampado pelo Dimas, estamos exatamente naquele período de abstinência de futebol, entressafra de Natal e Ano Novo que se estende até o fim de janeiro. O torcedor às antigas se sente deslocado, assistindo qualquer coisa pra empurrar o tempo, rezando pra começar logo o Brasileirão, Libertadores, porque até campeonato estadual perdeu prestígio. Antigamente, o fascínio eram as rivalidades locais e o perdedor anterior, com quase a mesma formação, ia enfrentar de novo o adversário. Garrincha iria novamente entortar Jordan, seu melhor marcador, ou Jordan ia se vingar de dribles anteriores amarrando o endiabrado Marquês das Pernas Tortas, como Nelson Rodrigues apelidou Garrincha. Ademir da Guia e Pelé sabiam que poderiam ir à forra no ano seguinte, vestindo as mesmas camisas, fosse no Parque Antártica ou na Vila Belmiro.
Mas hoje o torcedor já sabe que seu time não conservará nem metade do plantel e ele não poderá mais antecipar a escalação. Os jogadores podem beijar os escudos (leia-se emblemas) de vários clubes numa mesma temporada. Pode acontecer que até aquele que o humilhou recentemente passe a defender seu clube. Cite-se o caso de Fred, que passou direto do rival Atlético para o Cruzeiro, e volta fazendo juras de amor ao seu antigo clube. Durma-se com amores dessa natureza! Vai vir o dia em que jogarão o primeiro tempo por um clube e o segundo por outro. Podem escrever.
Quanto a uniformes e cores, nem isso ele pode garantir. Podem ser as cores tradicionais, o preto e vermelho, o azul e o branco, com mais um ou dois anúncios valendo ouro cada centímetro, mas também aparecer vestindo preto e branco ou azul e vermelho, cinza e fúcsia, magenta, ciano, cobre ou cor de burro fugido. Cada uniforme, secundário, terciário, de exibição, comemorativo, seja lá o que for, abarrotado de publicidade, terá sempre explicação para exibir cores bem diferentes das que ele sempre viu seu time jogar.
O certo é que se acabaram as referências costumeiras. Órfão dessas referências, como será o torcedor do futuro? Em que se apoiará para basear sua paixão? De repente, o cenário estará preparado para um novo tipo de apreciador, um bem comportado espectador, o torcedor-gourmet, o degustador, o consumidor de futebol como pretende o amigo do Dimas. E aí, adeus ataques inesquecíveis, adeus Garrincha, Didi, Quarentinha, Amarildo e Zagalo, adeus trio médio de 4, 5, 6 anos. Adeus Jadir, Dequinha e Jordan.