Milonga do cais

"E por não se lembrar

de acalanto, a pobre mulher

me ninava cantando cantigas de cabaré"

(Minha História, de Dalla/Palontino, versã de Chico Buarque)

Os velhos marinheiros, acompanhados por alegres damas da noite, gosstam de beber e recordar velhas histórias do mar num boteco perto do cais.

Uma dessas histórias é sempre recontada, principalmente no período do Natal. É a história de um marinheiro, hoje embarcado num navio estranho que ninguém sabe o nomee nem de onde veio, muito menos onde se encontra (em que mar, em que ocenao navega hoje). Era o marinheiro mais alegre e solidário, e mais querido, se bem que de vez em quando armava algumas arruaças, mas tudo coisa de somens importância. Era a alegria do cais.

Há quem veja nessa história uma blasfêmia. É o caso de um beatão falso moralista que vive assediando os garotões na praia. Para ele qem conta ou quem ouve essa história comete pecado grave. Vamos, pois, pecar.

Certa noite, uma noite sem lua, um navio muito estranho atracou no porto. Era um navio grande com luzes diferentes, com uma bandeira vermelha mas sem nenhuma inscrição ou desenho. Nunc s soube de que país veio. Uma velha que vendia tapioca no cais afirmou que era um navio fantsma. Já um antigo mestre de saveiros afirmou que era um navio pirata. E um professor boêmio muito ligado em ficção científica, disse que não era propriamente um navio, mas auma nave e insinuou: "Seriam os deuses, marinheiros?".

Desse navio desembarcou apenas um marinheiro forte, simpático e que impressionou as mulheres que faziam ponto nas imediações do cais. Algumas delas ainda lembram que ele falava, cheirava e gostava imensamente do mar, e tinha uma tatuagem no braço e dourado no dente, ele não falaa a língua nativa e se entendia com as pessoas por gstos, e com as mulhrs sava apens o olhar.

Flertou com várias mulheres, mas só ficou com uma, que se entregoua ele perdidamente. Foi um amor bonito mas fugaz, um amor de marinheiro, um amor que tem que ser intenso porque é breve, tem data par acabar. e repentem assim como chegou ele partiu, no mesmo navio estranho. Partiu ningupem sabe pra onde. Despediu-se depois de fazer amor pela última vez, deixando a pobre amante com um olhar triste e cada vez mais longe.

Ela nao se conformou, não quis entender o fim do caso, embora fosse igual a tantos outros que ela vivera. Depois da partida dele, ele ficou sempre esperando, parada, pregada unto a uma pedra do porto. etalhe: vestia o mesmo vestido que o marinheiro tanto gostara, mas como engravidara, o vestido foi ficando cada vez mais cuto.

A espera diária e permanente virou obsessão. As pessoas que antes sorriam e censuravam-na foram aos poucos se apiedando, se comovendo e tentando ajudá-la. Mas ela não desistia de permanecer ali com o olhar perdido e mirando o infinito do oceano.

Quando um navio apitava ela e enchia de esperança, mas logo se decepcionava porque nçao era o navio do amado.

Com o passar do tempo, no nono mês de gravidez, ela começou a achar que ia dar a luz a um santo. Na noite do Natal o menino nasceu em pleno cais. Ela embrulhou-o num manto e vestiu-o como se ele fosse uma espécie de santo. Crente dsso ela o ninava emocionada, mas coo não sabia e nem se lembrava de nenhum acalando, ela o ninavacantando cantigas de cabaré.

Ela foi evoluindo na sua obsessão e não tardou em alertar a toda a vizinhança que ali não estava uma simples criança, mas um ser especial, um santo. E não por ironia, mas por amor, resolveu chamar o filho com o nome de Nosso Senhor.

O menino cresceu no cais do porto. Era a alegria do local, amado por todos, até suas armações erm admiradas. Virou rapaz e a admiração continuou, era carinhoso, fraterno, sempre audando o próximo, corajoso, irradiava vida, era auma força da natureza. Amou várias mulheres e foi amado por todas. Todos os marinheiros eram seus amigos. Embarcou em vários navios, mas sempre voltava e quando isso acontecia era uma festa.Festejava de bar em bar, às vezes virava msas, bebia muito e chegava até a brigar, mas tudo dentro do figurino edo folclore dos homens do mar, sem ódios, nem ressentimentos. O interessante é que esses colegas e até mesmo os ladrões, as amantes e os colegas de copo e de cruz, só o chamavam de Menino Jesus.

Mas m dia, noutro Natal, vinte anos depois do seu nascimento, numa noite sem lua, eis que atracou no porto o mesmo navio estranho, com as suas luzes diferentes, a sua bandeira vermelha e sem nenhuma inscrição. s pessoas ficaram tensas e araram de sorrir, de cntar histórias e de beber, o navio não desembarcou ninguém, mas todos viram o rapaz alegre qe atendia plo nome de Nosso Senhor, de matulão às costas e gorro na cabeça, se despedir da amãe, que continuava vestida com o mesmo vestido antigo, e caminhar em direção do navio. Antes de sur a bordo, ele se virou e acenu rindo para os velhos marinheiros, para as mulheres e amigo. Subiu e o navio foi embora. As pessoas ficaram ali paradas, cladas, fascinadas, acompanhando o grande e estranho navio desaparecer no horizonte. Nunca mais se soube notícias do rapaz. Nem do navio. A pobre mulher continua parada, pregada junto à pedra do porto, esperando pela volta, não mais do amante, mas do filho, do seu santo.

Quando o navio desapareceu, as pessoas se dividiram ente os que achavam que era um navio fantasma e os que achavam que era um navio pirata. Mas houve quem lembrasse da tese do professor viciado em ficção científica que disser que o navio pode ser uma nave interplanet´ria. E repetiu a insinuação do professor: - Seriam os euses marinheiros? Um beberrão emérito afirmou rindo: - Ora, quem jpa viu nave espacial com bandeira vermelha? Um velho comunista gozador e irreverente, respondeu com outra indagação: - Ora, camarada, você está esquecio que a cor do Espírito Santo é o vermelho? E aduziu: - Como dizia o camarda Shakspeare, há mais coisas entre o ceu e a erra do que pensa a nossa vã filosofia.

Neste Natal a história do marinheiro ganhou mais um capítulo. É que uma mulher chegada do Vale do São Francisco afirmou que alguns pescadores viram um grande navio de bandeira vermelha, e que dele desceu um rapaz bronzeado, fort, alegre, cuja descrição coincide com a do marinheiro que atendia pelo nome de Nosso Senhorm qe esse rapaz estaria na região do São Francisco trabalhando com os sem-terra e rinbeirinhos. Que é sempre visto nas marchas e nas reuniões vestindo calças de marinheiro, camisa de meia com o rerato do Che Guevara e bone do MST na cabeça.

Mas e bom que fique claro que esta é apenas uma história de velhos marinheiros. E eles mentem um bocado, principalmente quando tomam umas e outras. É uma milonga do cais. Inté.

Dartagnan Ferraz
Enviado por Dartagnan Ferraz em 23/12/2017
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