Um Diário de Classe não Solicitado
Não me foi pedido estes registros. Foram me pedidas assinaturas, presenças lançadas, pontos distribuídos e lançados. Me foi pedido que fosse entregue em tal data em tal hora não sei o porquê. Tudo antes que o ano termine e comece o recesso. Recuperações dadas, as normas municipais obedecidas, deveres realizados, nada consta.
Para que não haja risco que pai ou mãe venham reclamar que não foi dada a oportunidade de reaproveitamento da avaliação que deveria ter sido aplicada antes que a recuperação fosse dada. Para que o direito do aluno não seja prejudicado e tenhamos problemas com a secretaria de educação...
Vou falar de outro diário. Um que não me foi solicitado, que talvez não interesse por que não foi estipulado pelas normas e nem fazem parte de alguma obrigação legal para que posteriormente não se venha prejudicar o histórico do aluno.
Não me foi solicitado falar das aulas em que tanto eu quanto os alunos ficamos emocionados com imagens de genocídios e começamos a ver o que o homem era capaz de fazer contra si mesmo e sua espécie. Quando percebemos juntos que ou nos consideramos humanos ou todo este terror seria repetido no futuro. Quantos motivos existiram pra fazer o mal e poucos para se fazer o bem.
Não me foi solicitado o registro de como rimos quando aprendemos o papel da empatia nas relações mais banais como paquera ou nas pirraças de uma criança de menos de 2 anos de idade.
Não me foi exigido a entrega dentro do prazo de como os alunos ficaram impressionados com os filmes Meu Nome não é Johnny e Última Parada 174. Quando um aluno comentou todos falavam do filme e ninguém reclamou de fazer a resenha.
Não me solicitado relatar o dia em que um aluno defendeu o porte de armas dizendo que atiraria em um assaltante pelas costas. Ninguém viu como defendi até o último momento a não violência e como temos capacidade de resolver problemas sem recorrer aos nossos instintos mais primitivos.
Não foi exigido o registro de quando levei os alunos para uma praça em frente a escola onde falamos sobre democracia grega e os problemas da representação política hoje.
A forma como alunos ficaram impressionados ao conhecer a história da umbanda e do candomblé e a vida que tinham na África, antes dos negros serem reduzidos a escravidão não foi lavrada em ata. A forma como se depararam com os próprios preconceitos e como viram tudo isto ser construído não mereceu lançamento.
Quando meus alunos detestaram as ideias de Thomas Hobbes, por identificá-lo com a violência do Estado, familiar a muitos deles, (juro que não induzi a isto) o registro não foi solicitado dentro do prazo de aulas mínimas que os alunos devem ter no trimestre.
A aula interrompida pelo funcionário, as 22:40, por que não ouvimos o sinal e queríamos falar um pouco mais sobre algum assunto não teve lançamento específico ou alguma menção em relatórios preliminares.
A aula sobre políticas públicas para a segurança onde uma aluna falou do seu irmão viciado em crack e se abriu com a gente sobre como a família se sente não terá relatório e nem constará de alguma observação especial ou providência cabível.
O silêncio aterrador quando falei de uma criança pobre com miíase que tomava banho em córrego poluído, a mãe que não tinha ideia de que isto fosse um problema, o médico que achou que fosse resfriado, as larvas que abundavam sobre a cabeça dela... Tudo isto pra exemplificar a complexidade das políticas de inclusão, não houve ata, lavra, uma folha específica.
A viagem no tempo através de painéis das décadas de 60, 70, 80 e 90. Vimos as mudanças tecnológicas, meus alunos se vestiram como meus tios na época. Discutimos onde estão os heróis de sua geração. Vimos que o passado é muito interessante se desconstruirmos os preconceitos. Olhamos para máquinas velhas, não como coisas inúteis do passado, mas com certa gratidão, pois vimos onde começou a internet e os sistemas modernos de comunicação. Sem ata, sem registro ou lavra.
Poderia escrever mais e mais vivências, ocorrências e descobertas. Diários, registros e atas não seriam suficientes, nem ao menos para captar a riqueza dos nossos enfrentamentos, conflitos e concordâncias.
Talvez por isto ele não tenha sido solicitado. Mas tão pouco parece ser mais importante do que aquilo que pode ser registrado.
Para o sistema, o professor é um emissor de registros compatíveis com as normas e portarias estabelecidos. O mais importante escapa pelos dedos, vira memória de professor e aluno.
O prestigiado registro oficial, documento da vida escolar do aluno, necessário para emissão do diploma ou possível transferência para outra unidade, jazerá esquecido em algum armário ou arquivo - depois de servir aos controles, autenticações e certificações que o sistema exige.
O que havia de vida naquelas aulas segue fora da escola muito longe dela, longe de armários poeirentos e esquecidos, estranhos aos mesmos.
"Houve um dia em que estes adultos desengonçados e esquisitos queriam me convencer, me transformar e me despertar para alguma coisa. Queriam que eu aprendesse coisas, que só agora entendo o porquê. Hoje, vejo nos meus filhos a minha teimosia e rebeldia, mas vejo em mim a luta daqueles professores que ora bem sucedidos ou ora não tentavam ser de alguma forma importantes na minha vida"
Entrego de qualquer forma este diário. E já adianto que incompleto. Por que a vida é assim, um fluxo que se move para o vazio, para o vir a ser. Um se tornar que não se basta e se reinventa pelo simples prazer de fluir, aprender e se transformar.