Eu me identifiquei com aquela barata.

Eu me identifiquei com aquela barata. Sim, me vi nela, mas até agora não sei se ela se viu em mim.

Eu me identifiquei com aquela barata. Eu a vi parada ali, com as asas comidas (parece que as formigas perderam a disputa), com as pernas tortas, parada.

Eu me identifiquei com aquela barata. Eu a olhei de frente, como se fosse um Deus, eu a vi, mas não sei se ela me viu, ou viu em mim esse poder em que me senti sobre ela, um Deus.

Eu me identifiquei com aquela barata. Como um último suspiro dentro daqueles longos poucos segundos.

Eu me identifiquei com aquela barata. E que de barata eu tenho a alma, mas ainda não sei se barata tem alma de gente.

Eu me identifiquei com aquela barata. Parada em meio a parede, em meio ao banheiro, em meio ao meio da casa, na busca ainda pelo refúgio na angustia sensação de não estar em casa.

Eu me identifiquei com aquela barata. Eu que, nos últimos meses, apesar de tantos espelhos, precisei de uma barata pra conseguir me enxergar, no meio da vida.

Eu me identifico com aquela barata. Que dali nunca mais a vi, provável que esteja já morta, mas que ainda viva em todas as outras baratas surradas que procuram um canto qualquer, mesmo na angustia de não se sentir em casa apesar de em casa está, e morrer sem os seus pedaços, mas ainda sim estava ali.

Eu me identifico com aquela barata. Depois me vi, e me perguntei o que tenho de barata a não ser o que eu já sou como homem? E se homem barata sou, será que ela se sentiu, em mim, como barata homem?

Eu sou aquela barata. Tomei meu banho e dormi.

André Gatti
Enviado por André Gatti em 12/12/2017
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