Minha vida com Clarice
Hoje marca o dia de sua partida e eu gostaria de prestar-lhe um tributo, escrevendo sobre o efeito estético de sua obra em minha experiência leitora:
Ler é já uma experiência, experimentação do outro. É, portanto, um diálogo em que mentes se entrecruzam para além da materialidade e percorrem os caminhos tortuosos que, a exemplo dos desenhos encefálicos, formam labirintos e podem alcançar profundidades desconhecidas, encontros de si neste mesmo desconhecimento... Foi o que aconteceu quando li Clarice Lispector.
Sua obra ergue pontes que ligam dois abismos intransponíveis: o tudo e o nada. Atravessá-la significou também correr o risco de sair do ‘tudo’ e descobrir o ‘nada’, assim como, ao fazê-lo, perder-me durante a busca do entendimento de que não se pode por fim entender, para não voltar ao estado do tudo anterior: mera organização humana.
A desorganização de Clarice encontrou-se com a minha, até então sentida, mas não compreendida. Encontros de paixões? Filosofia existencialista em debate? Ida ao inferno após morder a maçã? Quatro pedaços, visitando com a minha mente a de Clarice Lispector, e a descoberta de que o “inferno (também) é o meu máximo” – minha adaptação?
O inferno foi mesmo o ‘saber-me’, num processo complexo de pensamentos que realizam uma espécie de gradação reversa, como uma escala de vários tons de cinza que pouco a pouco tomam a tonalidade branca, a não cor, o mais profundo estado de uma consciência que precisa da desorganização para se encontrar.
Em analogia às diagramações que representam as camadas planetárias, li Clarice adentrando em meu mundo interior, soltei minha terceira perna e, diante do espelho, pensei pela primeira vez naquela mão decepada que segurava a minha, possibilitei a vivência de minha primeira descontinuidade, até que pouco a pouco transpassei meus próprio mantos.
Dando prosseguimento, alcancei a segunda descontinuidade, o mundo proibido, o inferno, lugar onde se confrontam todos os pares opositivos que fazem a vida: a existência, as relações com o outro, as divisões sociais, políticas, etc. Tentar compreender o choque de tudo foi tão improvável que por muitas vezes beirei aquele devaneio extremado e nele uma danação, presença ‘demoníaca’, no sentido do que é não-humano o sendo, do não-belo construído, arrancado de dentro como raios de luz.
Vi nos textos, e em mim, uma claridade própria ao núcleo interno que de tão forte fez-se branca, que não é cor, o neutro, o nada, estado mais profundo da minha humanidade. Para atingi-la foi necessário cavar, sujar-me com o húmus que forma a palavra humano, deparar-me com as durezas interiores, dizer sempre, achando que saberia o quê... Como, se tudo é construção? Dizia eu, então, com uma linguagem sonâmbula, caminhando insegura na linha limiar entre o mundo criado e o acreditado, entre a organização e a desorganização, onde está a essência do ser.
Como encontrá-la? Sempre pensei sobre isso. Cheguei à conclusão de que era preciso enjoar-me, como G.H, vomitar-me, botar-me para fora, esvaziar o meu ser de sua organização criada, abrindo espaço para uma nova alimentação.
Essa “náusea”, que também foi de Sartre, foi preciso vivê-la, sentí-la rasgar o esôfago, compreendê-la. Vomitar até que sobrasse a água insossa, vazia de nada, onde pré-existo humana, onde se espelha meu neutro reverso, onde posso confrontar a minha própria alienação, desejar minha emancipação e, enfim, desistir de “dizer”.
Desistir é essencialmente humano, um nada não-adorado. É um alívio não dizer o mundo sem mentir. Mas, como diz Clarice “A vida se me é. A vida se me é e eu não entendo o que digo. E então adoro”.
Que seja a desorganização, o reverso, o ponto de partida para os mundos: o externo e o interno a mim. Nada de explicações, de regras, de respostas. Há um inferno, sua alegria, mansidão, regozijo, apoteose do neutro humano perdido e encontrado no mundo desumano.
Há um núcleo branco da cor do vômito cansado, há um inferno que é a escolha de saber.
Obrigada, Clarice, por sua franqueza. Obrigada por continuar a existir, desmaterializada na sua linguagem, dando-me compreensões.
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