QUANDO A CHUVA CAÍA

Naqueles tempos remotos que hoje reporto num estro poético e em cenas pitorescas, o mundo de minha infância era um paraíso diminuto, recatado e plácido. Havia muito mato e muitas ruas sem calçamento. Tínhamos, portanto, muito verde, muita terra e, por conseguinte, muita água.

Quando as chuvas descambavam serenas, na melancolia das noites fagueiras, era gostoso deitar e ficar encolhida sob o cobertor, com os olhos bem abertos, fitando o vazio, entregue à escuridão, sem pensar em nada; só ouvindo o vento assobiando pelas frinchas e o tilintar das águas contra as telhas. Um ruído doce e contínuo. E quando a tormenta se abrandava, a natureza festejava com os coaxos graves e agudos de rãs e sapos, oriundos de todos os recantos. E a sinfonia rompia a madrugada.

Nas primeiras horas das manhãs, os anfíbios silenciavam e o mavioso canto dos pássaros celebrava o alvorecer. O cheiro do mato, aroma da vida, recendia com maior intensidade. A natureza se harmonizava e a vida se renovava.

Durante o dia, quando a chuva vinha intrépida, violenta, os ares de minha casa se modificavam. Panelas, baldes, latas, bacias, tachos e outros vasilhames que armazenavam água espalhavam-se pelo chão. As goteiras tiravam o sossego e o humor de minha mãe, mas divertiam muito as crianças. Quando o telhado da sala estava em ordem e não gotejava (isso raramente acontecia), era possível conseguir permissão para um bom banho de chuva. A meninada ia para o quintal, pulava e cantava; fazia a maior algazarra recebendo jorros da bica de zinco. E quando o salseiro passava era hora de correr para a rua para desfrutar da delicia de brincar na enxurrada. Na água barrenta colocávamos barquinhos de papel e até nossos chinelinhos. Alguém ficava numa ponta, para fazer descer, uma a uma, cada “embarcação” e o outro se posicionava bem mais embaixo para resgatá-la. Às vezes o resgate falhava e um chinelo ia embora, perdia-se na correnteza E a gente ganhava chineladas.

Como eu gostava de chuva! E o melhor de tudo era ouvir trovoadas e ver raios cortando o espaço em todas as direções. Enquanto minha mãe tremia, tomada pelo medo, eu escancarava um sorriso e vibrava ao ouvir aqueles roncos sacudindo a terra. Imaginava que eram gritos de Deus, mostrando força e exigindo respeito. Quanto mais forte a chuva maior era a diversão. O pé d’ água descambando pelo vale era algo sublime, lindo de se ver. Parecia um rio. Começava a altura da Praça do Lobão e seguia entrecortando terrenos baldios e os fundos dos quintais da Rua do Cabeça e da Rua da Misericórdia; indo ao encontro do legítimo Riacho das Pedreiras. Nessas horas, a meninada driblava a vigilância e corria para a Rua Barão só para contemplar o rio empanzinado, batendo violentamente naqueles paredões de pedra que o margearam por anos e anos, no longo processo de urbanização. Ali, onde hoje figura uma quadra esportiva, era o trecho mais profundo e a gente tinha medo de cair. Nos outros trechos, a profundidade não assustava. A gente caminhava sobre os paredões e ouvia a canção das águas. E o rio límpido arrastava folhas, pedregulhos, talos, galhos, encantos, alegrias e inocência. Quando o vento batia, os velhos jatobás dançavam, tremiam de frio; e chuvas de folhas cobriam de verde o chão duro e batido.

Passadas as tormentas, nos ocupávamos catando tanajuras. Depois, na terra ainda úmida, mas firme, riscávamos o chão jogando finca. Anfíbios em grande quantidade saiam atarantados pelas ruas e eram facilmente vistos nas calçadas, nos quintais, nos bueiros; em todos os lugares. Medo para uns, distração para outros.Tínhamos nossa jia de estimação, num bueiro de nosso quintal. E ela viveu muito tempo... até ser descoberta pelo meu tio. Acabou transformada em farofa, servida como tira-gosto num desses botequins de esquina.

Naquela época era assim. Quando o tempo das águas chegava ao fim, ficavam algumas grotas e muitas poças. Os estragos não eram tão grandes e a prefeitura resolvia tudo compactando os terrenos com cascalho. Foi assim por muito tempo. Então veio o progresso, que calçou ruas, construiu muitas casas, ruas e bairros, acabou com vales e terrenos baldios, cobriu o rio transformando-o em esgoto, acabou com as goteiras de minha casa, com os anfíbios e tantas outras coisas.

De quando em quando ainda corre uma chuva de saudade e, de olhos fechados, eu encontro novamente tudo que o tempo levou.