FRONHAS ENCARDIDAS DE LICOR BARATO
A palavra tem sangue correndo pelas suas veias. Tem gosto, tem textura, tem cheiro, tem pele, tem pai e mãe. Pode ser virada do avesso, dissecada, cozida, destroçada, congelada, o diabo. Palavras têm vida, bem diferente da nossa. Elas podem se fazer passar por algo estático, frio, mas é mera dissimulação. Quando menos esperamos, arregaçam seus dentes afiados e dão o bote. Quando menos esperamos, saem da clausura e viram fogo. São hábeis articuladoras de sonhos, são potentes grunhidos de fera no cio. Palavras têm vértebras, coração pulsando, sombra por onde andam. Você pode tentar ignorá-las, zombar delas, fingir que são só palavras e nada mais. Mas elas têm os segredos dos mundos nas suas entranhas, sabem fecundar o que se faz inerte, são capazes de colocar ordem no caos, fazer o fétido virar gozo. Palavras são o cano de escape das dúvidas, a fantasia dos poréns, o tiro de misericórdia da solidão. Palavras são a tradução secreta dos medos de Deus, o vão oco que nos derrubam para o fim e o começo. Palavras são tropéis aguçados da melancolia, o pecado ainda não ungido. Palavras são o respiro da fé, do medo, da inquietude maior. Elas reinam incólumes sem pedir licença. Fazem o chão ronronar, a mão se encarcerar e o sentido virar puta de esquina. Palavras são desmandos dos coronéis que teimam em nos habitar e nos reger. Cada uma de suas ancas suportam o suor de todos os homens - dos que viram e virão. Palavras têm gingado, têm folia, têm rebarbas que nos tiram do sério. Brincar com elas nos deixam menos falidos, menos opacos, menos morte. Palavras afloram o que guardamos a sete chaves nos confins das nossas ilusões, dos nossos galopes mancos, todos eles. São os sinos que requebram loucamente nas querelas absurdas da paixão. Se as tragamos profundamente, fazemos debandar nossas fraldas encardidas de licor barato. O mesmo licor que nos enfartamos, quem dera, dopados num canto de mesa empoeirado qualquer.
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