QUANDO O ANJO DA GUARDA DORME NO PONTO
E assim começou o dia dela...
Levantou cedo, olhou pela janela esperando algo que nem sabia o que era. Respirou forte e foi encarar aquela pia fétida. Pegou uma garrafa pet embaixo da pia e ali mesmo lavou o rosto e escovou os dentes. Ainda com a escova na boca foi fazendo o café.
Ascendeu com muito custo uma lata velha e queimada onde havia alguns pedaços de carvão e cheiro forte de querosene – era seu fogareiro. Pegou a água e colocou num bule sem alça e o equilibrou numa plataforma emaranhada de arames. Enquanto a água aquecia colocou o pó de café dentro de um coador (com pó de café de ontem). Camadas sobre camadas...
Seu olhar mirava a janela. Com os primeiros raios de sol tocando sua tez, já previa que o dia seria escaldante. Pensou: “As portas do inferno abrem no verão”. O cheiro do alumínio seco sendo queimado pelo fogareiro a fez dirigir seu olhar para o bule. Mais que acelerada catou a garrafa de água embaixo da pia, jogou no bule. O barulho da água caindo no objeto inflamado a fez recobrar a sanidade.
Correu para colocar a calça jeans surrada, uma blusa preta cuja condição estava mais lastimável que seu jeans surrado. Surge um tênis na sua frente que visivelmente não lhe cabia nos pés, calçou sem nenhuma meia, afinal ou as meias entravam no par de tênis ou o seus pés, os dois juntos seria impossível. Segundo o princípio da impenetrabilidade, dois corpos não podem ocupar ao mesmo espaço ao mesmo tempo. O camarada Newton sabia das coisas e a Guria também.
Ela voltou-se para o preparo do café, ao término bebeu o líquido quente e amargo. Seu semblante demonstrava o prazer de quem toma um autêntico cappuccino italiano. A mente por poucos segundos ficou liberta. Não era mero prazer de degustação. A cafeína entrava pela sua garganta e seu cérebro já sentia os efeitos da gratificação pelo medicamento. Quem pode condenar o uso medicinal do café? Afinal ele estimula a atenção, a concentração, a memória e o aprendizado.
O burburinho ao lado de fora da janela a fez recobrar a sanidade. Lá se foi mais uma vez os segundos de libertação. O barulho enrolado dos que caminham cotidianamente para o trampo chegavam aos seus ouvidos.
_ Hoje é dia de preto. Bora trabalhar, negrada. Hoje é segunda! Hoje é dia de luta! -Desce a ladeira berrando seu Osmar.
Uma pequena observação. Quem precisa de despertador quando se tem vizinhos que pegam no batente no mesmo horário que você?
_ Vamos que o ônibus não vai esperar. Fala uma mulher embaixo da janela da Guria.
_ Agiliza Néinha! Por que você não deixou essa criança para Dorinha levar pra creche? - Braveja uma senhora corpulenta de meia idade.
_ Comadre, Dorinha está demais. Não me atende em nada. Já não sei mais o que fazer. Não posso contar com ela para olhar nem mesmo os irmãos.
O olhar de Néinha se perde junto com a fala que é interrompida ainda pelos berros do Seu Osmar que desce a ladeira bravejando que hoje é segunda-feira!
Corre! Confere o se apagou o fogareiro, prende o cabelo e por cima coloca um boné, aloca a mochila nas costas curtas. A figura esguia parte para a luta.
Desce o morro. Desce meio que em surdina. Não fala com a vizinhança, meio que “passa batida” em meio aquele monte de gente que vem descendo a ladeira. Ela não olha seus semelhantes, parecem todos um monte de bocas abrindo e fechando. Ela desvia o olhar. Nem mesmo o bom e velho “bom dia” a Guria quer dar. Ela passa pelo ponto de ônibus e não para, continua o percurso a pé - não tem dinheiro pro ônibus? A Guria não tem dinheiro nem mesmo para cagar.
Caminha com passos largos, ainda que seja um “cotoco de gente”. Em nenhum momento aparenta saber o caminho que deve seguir, parece caminhar sem destino. Atravessa as ruas sem nem olhar o tráfego dos carros - será que o efeito do café já passou? As vezes empaca e olha para um lado e depois olha para o outro. Parece esperar o surgimento de uma seta que indique a direção. É só uma questão de escolha. Não há GPS, não há mapa, não há trilha.
Virou a direita numa encruzilhada. Continua caminhando, agora num local com maior movimento. Pessoas pra lá, pessoas pra cá. A figura esguia, com olhar cabisbaixo, agora dá lugar a uma olhar ligeiro, maloqueiro e inquieto.
A menina para numa praça. Há um olhar de astúcia. Os lábios roçados bruscamente demonstram certo frisson. O olhar astuto da Guria acompanha com um monte de gente; vibra com qualquer possibilidade. Ela olha tudo e todos, mas também tem gente de olho nela.
Um homem de meia idade olha para ela com um jeito impaciente, coloca a mão na algibeira. Os olhos perseguem a Guria, perseguem suas partes, uma a uma.
Ela muito descolada, some num piscar de olhos - sacou que havia um possível predador?
A Guria reaparece. Uma cara contente, meio extasiada. Está com um olhar diferente. Carrega em uma das mãos uma latinha de refrigerante e na outra uma guimba.
Escrito em 21/02/2017 Revisitado em 05/03/2017
Inca