Copenhague Zero Grau - Táxi ao Paraíso
Quando o casal se abraça, quando o casal se beija, quando casal se toca, e você está sozinho no ponto do ônibus, nunca a noite pareceu tão fria, nunca o céu pareceu mais distante, nunca as estrelas pareceram tão geladas. Nenhum chofer de táxi se propõe a aliviar sua pena, a conduzi-lo de graça a casa, os ônibus noturnos como que entraram todos em greve. Andar de lá para cá para mover o sangue e circular o calor. Aí, começam as miragens. Debaixo do céu limpo, você começa a imaginar o momento sublime de girar a chave e deixar de fora o vento e as estrelas geladas, pendendo do céu como cacos de vidro, fiapos inúteis de sorvete. O momento sublime de meter-se debaixo das cobertas, de ligar o rádio e esperar que o calor do quarto faça as pazes com seu corpo. No seu cérebro ligeiramente perturbado, palavras tomam força, viram imagens, podem quase ser tocadas. Calefação, por exemplo: palavra mágica. Cobertores, por exemplo: que prêmio primeiro de loteria! Houvesse ainda um corpo quente e uns lábios molhados à espera, e você teria adentrado o Jardim das Delícias, que é, na verdade, um depósito de cobertores e de aparelhos de calefação de todos os tipos possíveis, com algumas mulheres ardentes de contrapeso. Ou, pelo menos, Aquela.
Assim o caminho do Paraíso. No meio da selva de ideias e soluções mágicas, nossa ansiedade a tudo rotula de miragens, haja vista tantos desacertos, tantos desencontros. Fica-se indeciso e repartido. O Capitalismo sedimenta as bases do egoísmo. Fica-se medroso, ficamos sós. O Comunismo à força, imperialista, massacra o Indivíduo e faz do sonho o pecado capital. Capital. Fica-se assim buscando o quarto quente, a calefação conciliadora. Estamos no ponto gelado à espera dos ônibus quentes e sabemos que há casais que se abraçam, se beijam, se tocam. Não podemos esperar por nossa vez passivamente. Também nascemos para o calor, para a felicidade, para a libertação (não para a liberdade, olha a diferença) e temos direito a isso. É preciso encontrar a solução abrangente, universalista, humilde, honesta. Tudo aparecido até agora tem restringido, tem rótulo de bom ou de mau. Ao lixo com isso. Há gente anunciando uma aurora saindo detrás da serra. Desconfiamos dela positivamente. Há que estar de olhos abertos para todas as auroras, mas esta que ali vem, vem acendendo algo em nossos corações. Tem gente lutando pra que ela irrompa e tome a todos, impulsione a todos. Essa gente é gente como eu, como você. Não têm deuses. Têm a si mesmos. Também sonham com o momento de girar a chave, deixar lá fora as estrelas geladas, descobrir a calefação que aqueça a todos os povos, calefação abrangente, universalista.
Querem saber o que é? Calma, devagar. Você tem que estar no ponto pra saber dessas coisas, há que estar no ponto que nem doce de goiaba. Nem antes nem depois. Quem estiver, poderá entender. Vão descobrir por si mesmos, porque é a experiência, ao fim e ao cabo, que conta. Aí vão entender que calefação propomos para suas vidas. Vão saber que táxi lhes pode levar ao Paraíso.
(Copenhague, Dinamarca, 21/03/1980)