As lágrimas que caem hoje regam as rosas do amanhã

Carmesim

Ela não sentiu como deveria ter sentido. Aquele golpe a pegou desprevenida. Não eram as palavras, mas quem as diziam que tornava tudo tão intenso e lacerante. Aqueles lábios que um dia beijou, acariciou com os dedos enquanto pensava que o amor estava nos detalhes. Aqueles lábios que tantas vezes lhe disseram que a amavam mais que tudo, que sorriram até das suas piores piadas, sorriram até nos piores momentos que passaram, agora estão firmes e secos ao pronunciarem aquelas palavras. Ela ajoelhou-se, cobriu o rosto cheio de lágrimas com as mãos tremulas e desejou que acordasse, mas não acordou: não se pode acordar estando acordada – pensou ela –, murmurou as mesmas palavras tão pungentes ao seu, agora, fragmentado coração.

Ela entendeu que a pior morte era estar viva e que viver era a mais terrível das mortes que poderia ter agora. Sentiu o sangue abandonar suas veias e viu que seu coração não queria bombeá-lo mais. Estranhou tal comportamento do seu corpo que, por mais que o que mais desejasse era estar viva, algo dentro dela queria a escuridão, a morte em si. Queria a morte, não uma morte cruel para fazer jus a sua dor, queria terminar na cama, dormindo em sono profundo sonhando estar envolta por um campo rosas: que eram as flores que mais gostava. Podiam ser também tulipas, ela também gostava muito delas, não mais do que de rosas, porque rosas lhe faziam lembrar de sua infância, da inocência, do amor puro que sentia por sua mãe – que as plantavam nas janelas –, pai e irmãs. Daquele amor simples e verdadeiro em que os olhos não perdem o brilho, não perdem a placidez.

Com o passar do tempo ela constatou que a dor não mudaria mais nada em si mesma, e que o caminho era desistir: estava cansada demais para se reerguer. Pensou que, pôde escolher tudo na vida, menos amar e a quem amar e, que isso era, ao mesmo tempo, cruel e integro a todos. Ela olhou seu reflexo no espelho sujo com marcas de um velho batom que gostava de usar em ocasiões especiais – marcava cada uma para contar quantas vezes foi feliz –, e, viu seus olhos apáticos, abatidos e inchados dos dias sucessivos de choro e, não viu vida, nem sequer um pouco de brilho, que era o que mais os outros lhe elogiavam – que olhos brilhantes – diziam eles. Que olhos opacos – disse ela para si mesma enquanto tocava seus olhos no reflexo. Ligou a torneira da banheira e começou a se despir. Cada peça de roupa lhe custava um esforço tremendo para tirar. Parece uma armadura – pensou ela –. Tirou todo aquele peso do corpo, mas não sentiu diferença e, percebeu que o que lhe pesava não era aquela armadura, aqueles trapos, e sim algo que desconhecia: talvez seu coração carregasse esse peso: talvez sua alma: talvez seus olhos marejados e inchados: talvez fosse somente o simples fato de se sentir vazia, de sentir esse vazio profundo e angustiante que lhe deixava arquejante e insossa. É, era esse vazio que lhe tirava o brilho dos olhos porque, se recordava ela das aulas que tivera nos tempos de escola, que a luz precisa refletir para que possamos enxergar e, seus olhos já não mais refletia nada. Seus olhos agora eram apenas tuneis sombrios para o vazio dentro de si e, que dentro dele nada conseguia escapar, a não ser o próprio vazio.

Submergiu naquele oceano diminuto e olhou o teto deformar conforme se mexia devido a refração – era culpa da refração ou o mundo se tornou líquido? – pensou ela –. Pensou em ficar ali por horas naquele pequeno universo líquido e plácido, mas sua biologia não permitia tal ato. Emergiu e submergiu e fechou os olhos em uma regressão involuntária. Voltou aos seus sete anos onde sua maior preocupação era se sua mãe lhe deixaria brincar na rua com as outras crianças. Pensou no que era a felicidade e em como complicar as coisas a torna inalcançável. Pensou que, quanto mais se envelhece mais as coisas se complicam e isso faz todos enlouquecerem na procura pela felicidade e acabam por perde-la em achar que, para encontrá-la, é preciso planos mirabolantes em vez de simplesmente percebê-la nos detalhes. Pensou que desde pequena a ensinaram a ignorar os detalhes e que talvez seja essa pregação banal que fizeram todos se perderem. Percebeu que regar todos os dias a si mesmo com respeito e ternura podem fazer o sentimento mais puro, mais vivo, e, ser você para si mesmo pode mudar absolutamente tudo a sua volta.

Suas lágrimas caem em uma torrente incontrolável e logo se misturam a toda aquela água confundindo-a a tal ponto que se pergunta se a banheira está cheia com água ou lágrimas. Ela emerge e sente que não quer mais pertencer aquele mundo rígido, seco e sólido. Não é o mundo que é feito de concreto e aço, são as pessoas que estão sendo construídas assim. Concreto e aço, tão mais fácil edificar pessoas com ternura e respeito – disse as paredes ladrilhadas –. Ela submerge mais uma vez, mas dessa vez em si mesma, pois oceano mais profundo não poderá existir, e o que mais a conforta agora é o isolamento. Agarra seus joelhos rugados e se pergunta: o que eu me tornei, líquido ou sólido? Seus olhos respondem a sua pergunta incansavelmente. Seus olhos se fecham e ela naufraga. Desce lentamente as profundezas desse seu oceano recôndito. É o fim – pensa ela –. Lentamente as trevas tomam a forma de uma coruja e a mesma plana em sua direção. Ela estende o braço para ela pousar. Os olhos fulgurantes e cálidos da coruja fitam-na e ela sente seu peito pulsar. De súbito ela coloca sua mão sobre o peito e sente bater em ritmo lento, sente o calor aquecer seus dedos rugados. Suas lágrimas evaporam sob seu rosto. Seus olhos ardem como se estivem em chamas e os da coruja refletem esse brilho como o sol nascente no horizonte. A coruja com uma voz amena sussurra-lhe ao ouvido: “a centelha da vida é a dor, e ela é a única capaz de manter a sua acesa. O amor é o algoz do sofrimento tanto quanto seu mais fiel companheiro. E lembre-se, a tempestade é apenas água”. A coruja alça voo acima de sua cabeça e brilha intensamente até se consumir em um brilho impetuoso. Várias centelhas caem de onde seu corpo desapareceu e uma delas cai em sua mão. O brilho forte faz com que ela proteja os olhos com o antebraço e, quando ela volta a olhar sua mão, há uma rosa, não uma rosa qualquer, era a rosa que sua mãe dera a ela assim que plantou seu primeiro jardim. Ela sabia que era essa rosa porque o perfume era único. Ela fecha suas mãos apertando o talo com toda a força que tem sem se importar com os espinhos – nada mais vai doer, nada mais vai machucar – disse ela –. O sangue corre por entre seus dedos e cai na água tingindo-a de carmesim. Ela faz de seu mundo carmesim e líquido um colo afável, como o da sua mãe, e adormece. A última lágrima percorre seu rosto exatamente quando a última folha cai anunciando que a sua estação favorita está chegando.

Os raios de sol passam pela pequena janela e toca seu rosto aquecendo-o. Ela acorda e percebe estar envolta em rosas. Recolhe o quanto consegue abraçar e sorri. Ali passa algumas horas a tirar as pétalas de algumas rosas e a brincar como se fossem barquinhos, seus barquinhos vermelhos em seu oceano diminuto carmesim. Levanta-se e sente que aquele peso não castiga mais seus ombros, que aquela leveza por pouco não a faz flutuar. Olha-se no espelho e percebe que seus olhos estão mais vivos, que o brilho, mesmo que pouco, está ali. Veste-se com seu vestido florido que deixa seus joelhos amostra e passa o seu batom favorito, quando termina ela faz uma marca com ele no espelho, como costumava fazer – eu sou um detalhe – disse ela a seu reflexo. Caminha até a porta e a abre, o sol brilha com uma intensidade que ela nunca tinha reparado. Ele não queima, ele aquece seu corpo como o colo de sua mãe. Como ele é afagador pela manhã – pensa ela –. Ela sai descendo cada degrau contando-os. Continuou a caminhar pela rua sem destino certo – certo agora é o que sou, é o que me tornei – proclama ao céu anil –. Alguns passos à frente, quando uma brisa toca seu rosto e balança seus cabelos ela diz ao vento – Certo é que, se queremos ver o arco-íris temos que aguentar a tempestade e, que a tempestade é apenas água –. Entendeu que o mundo é cíclico e que a felicidade é como a sua estação favorita, não dura, mas sempre volta e que, quando ela chega, nós devemos aproveita-la ao máximo. Ela sabe agora que há uma nova semente em seu peito germinando, sabe que será uma bela flor quando florescer, o que ela não sabe ainda é a quem vai entregar essa nova rosa carmesim que está no imo do seu coração, agora, restaurado.