O pai, o filho, o templo e o livro
Havia um cara sentado lá em cima.
Não sei se era no céu, mas com certeza era em cima, pois se fosse embaixo, seria do mal e do mal, diziam que ele não era.
Também não sei bem se era "um cara". Pelo jeito que falavam, parecia que era. Homem.
E sendo homem, alguns diziam que tinha barba e era branca.
Mas isso tudo eram conjecturas e sempre houve o questionamento do porque de não ser uma mulher. Não era. Se havia alguém lá no alto, era homem. Ponto.
E em cada lugar daqui debaixo (mas não tão baixo quanto naquele lugar onde habita o mal), deram nome a ele:
Zeus, Alá, Brama, Jeová, Atom, Krishna, Govinda, Deus...
Mas não parou por aí, esta criatura divina que a princípio devia ser um, mas pela escolha humana nunca foi, enviou seu filho/profeta/messias para a mais terrível das missões: trazer algum conhecimento para criaturas tão limitadas quanto pedras mortas.
E assim o ungido veio e recebeu também diversos nomes, cada um de acordo com as características de quem o recebia e batizava.
Era de se esperar que a história acabasse aí, pois sendo deus ou ao menos sua prole, com a missão de ser mensageiro/filho/profeta, poderia ter trazido para a tal humanidade doente, conhecimento e luz. Mas havia um tal de arbítrio na história toda e aí a coisa desandou.
Quem ouviu, ouviu. Se aplicou na vida, utilizou, interiorizou e propagou é outro caso, mas o fato é que se isso houvesse ocorrido, talvez hoje este mundinho não estive tão estragado... Talvez.
O fato é que cada um via e sentia de um jeito, acreditava de uma forma e aí resolveram compilar tudo para sair dos erros grosseiros de transmitir tamanho conhecimento de lábios a ouvidos.
E como cada um tinha um deus que tinha um filho/messias/profeta, nada mais justo e correto que cada um tivesse também seu próprio livro de regras.
E foi escrito. Um livro para cada um dos deuses, com a história característica de cada um dos filhos/messias/profetas/mensageiros.
Recheado de páginas, informações, regras e palavras veladas.
E aí tudo ficou mais claro. Se havia tanta informação, não haveria como errar.
Mas havia.
Porque as tais regras, escritas em diferentes épocas, por distintas pessoas, admitiam um série de interpretações baseadas sabe-se lá em quê, exceto a interpretação de quem as interpretava...
E assim, como cada um tinha um deus que tinha um filho que tinha um livro, nada melhor que ter um grupo de pessoas que liam, viam e acreditavam da mesma forma.
Então nada mais justo que se criasse um templo.
E criou-se. Cada um mais grandioso que outro. Cada um mais rico que aquele que estava ao lado. Afinal era um deus com seu filho que tinha seu livro.
E agora tudo estava certo. Cada um no seu templo adorando o seu próprio deus com seu próprio filho e seu próprio livro. Tudo deveria se acalmar.
Mas não se acalmou. Dentro do templo surgiram os "istas". Especialistas, articulistas, oportunistas, teologistas e tantos outros "istas" que um dia se perdeu a conta.
Estes, sim, sabiam ler o tal livro e consequentemente saber mais do filho/mensageiro e entender melhor o pai. (Onde estão as mulheres nesta história, afinal?).
Os "istas" é que tinham a informação, o entendimento, a comunicação (alguns falavam até em outras línguas). Portanto era justo que se separassem dos demais com suas crenças limitadas e fundassem outros templos, outras linhas, outros grupos. Aí então tudo ficaria bem, porque afinal, houve a tal revelação...
E assim, novos templos surgiram de dentro dos templos, para explicar o livro, ser dono do filho e ter acesso irrestrito do pai.
Muitas regras foram escritas com isso tudo. Criaram-se universidades, conselhos, outras leis e chegaram até mesmo a definir quem podia ou não falar do pai, do filho, do livro.
Aliás, a estes dois atribuíram no mínimo exigências estranhas: não gostavam que as mulheres usassem calças ou cortassem os cabelos, não se podia trabalhar aos sábados, nem doar sangue, não se podia comer um tipo de carne (outro podia), nem tirar a barba, descobrir a cabeça, falar algumas palavras, tomar certas bebidas, pintar as unhas, tirar os pêlos do corpo, adorar imagens (para outros era obrigatório a santeria), batizar um adulto, deixar de batizar uma criança, controlar a natalidade, não ser celibatário, só ouvir determinado tipo de música... Eita, como é difícil satisfazer a tal dupla... Haja paciência.
Em contrapartida, dizem que gostavam de coisas bem diferentes: cantoria nos templos era sempre bem vinda, um tal de dízimo nem se fala, se o sujeito enfiasse o pé na jaca na semana, estava perdoado no domingo.
Em nome do filho tudo se podia e alguns se valeram disso para mentir, manipular, fingir e dissimular.
O que havia, entretanto, nesta história toda era a presença sempre marcante e nunca esquecida do "habitante" lá debaixo. Uma verdadeira paixão platônica. Uma celebração diária e disfarçada onde a ele tudo se atribuía. Um poder velado, mas constante daquele que não deve ser nomeado, mas que, em seu nome tanta coisa errada se justifica pela total e completa covardia em se assumir o próprio erro.
Mas se existia o chifrudo, mesmo que alimentado diariamente pela vaidade, preguiça, gula, cobiça, orgulho e luxúria do povinho que não o esquece um só dia, havia também a possibilidade de combatê-lo com a figura não menos criada do pai, do filho, do livro, do templo, do canto, do dízimo, do emburrecimento...
E cá estamos hoje em dia nesta miscelânea que de tanta confusão já não tem nem nome. Dizem por aí que há pessoas que estudam profundamente todas as facetas desta história. Sabem na ponta da língua todas as regras e leis dos tais livros...São os especialistas dos "istas"... Parece piada, mas não é.
Para uma pessoa completamente leiga como eu, sem especialidade alguma em coisa nenhuma deste assunto, isso tudo soa como algo muito engraçado.
Parece para mim, e posso estar completamente enganada, que isso tudo é uma baboseira tremenda onde se criou e colocou a Divindade em quadradinhos muito bem decorados tentando explicá-la com um tipo de conhecimento símio.
Um principio dissociado de gênero, cor, região ou época, que insistentemente sofre tentativas de domínio onde a soberba em sua mais ampla atuação de mãos dadas com a vaidade, grita a plenos pulmões que aquele grupo/templo/escola/ é o dono da verdade.
Sou totalmente analfabeta na ciência dos "istas". Graças a Deus! Mas uma coisa eu sei... Para mim não há necessidade de nomes, conceitos, separações, livros, regras infindáveis de roupas, cabelos e comportamentos. Não é preciso o templo gigantesco, a música estrondosa, a arrogância de quem se acha melhor a cada domingo.
Tudo é bem mais simples.
Mas talvez a simplicidade canse e seja enfadonha para tantos outros. É preciso criar as regras e as tantas formas de crença disfarçada de fé. Talvez só assim seja possível justificar a discórdia, as arrecadações, as guerras, a superioridade e a cara de pau de ser dono de deus, seja ele de que tipo for.