ÀS CINZAS O QUE SÃO CINZAS

Primeiro de março, talvez o primeiro dia do ano para uns poucos privilegiados. O meu ano começou em janeiro mesmo. Mas, não há como negar que o início de mês tem sempre aquela aura de vida nova, de renovação; parece que a largada foi dada agora. Eu vou pegar essa ideia e colocá-la em ação. Eu prometo para mim mesma continuar escrevendo, lendo, estudando, buscando o autoconhecimento pela escrita, pela fé e a crença inabalável no amor. Ontem mesmo, finalizei a leitura do mais recente título do meu ídolo literário, Ian MacEwan, "Nutshell" ou "Enclausurado" em tradução para a Língua Portuguesa. Como sempre, MacEwan não perde a capacidade de se renovar. Indico sua leitura para os amantes da boa escrita. Na mesma linha, para este mês, estou agarrada com o livro “Precisamos falar sobre o Kevin” de Lionel Shriver. A primeira vez que tive contato com esse livro, eu fazia parte de um clube de leitura que se dedicava à apreciação exclusiva de autoras, naquela proposta do “Leia mulheres”. O livro de Shriver é fascinante, sobretudo, porque coloca em pauta os crimes juvenis, as chacinas cometidas dentro de escolas e comunidades. Tais crimes quase sempre são motivados pelas sequelas deixadas pelo bullying, ou por questões muito mais aflitivas como, por exemplo, a ausência dos pais na educação dos filhos, a omissão corriqueira na formação e na percepção das necessidades juvenis. A autora não só relata um pesadelo da modernidade estadunidense, ou seja, a falência do modelo de educação que supervaloriza o sucesso e o primeiro lugar e despreza o outro considerado “perdedor”, como cria uma intrigante narrativa epistolar que expõe as reflexões da personagem Eva, mãe de Kevin, sobre as ambivalências da maternidade, desmistificando as ideias de amor incondicional e o conceito de maldade. Eva retrata suas percepções sobre o filho que, prematuramente, apresenta traços evidentes de maquiavelice. Além disso, ela dialoga com o pai do menino, Franklin, enfatizando a ausência desse como decisiva para o desfecho na história do filho. Ou seja, temos aventura pele frente. Março começa bem na quarta-feira de cinzas, tempo de jejum, oração, perdão e compaixão. Tudo o que eu preciso fazer e receber. E eu só me dei conta disso quando terminava de preparar uma galinha caipira. Eu poderia relativizar as determinações da doutrina judaico-cristã de não comer carne, quem sabe estabelecer outra forma de realizar esse sacrifício, mas logo pensei que sempre estamos relativizando as coisas, sempre menosprezando os avisos, os sinais, as obrigações. Desconsiderando a ancestralidade que contém parte da nossa identidade, da qual viemos e de quem herdamos nosso amálgama, aquilo que nos rejunta, que nos torna mais palpáveis e íntegros. Então, resolvi seguir minha intuição, até porque sou toda intuição, e preparei outra coisa. Quem conhece meu paladar sabe que foi um grande sacrifício. Mas, quero crer que a ideia de sacrifício extrapole o quesito gastronômico, talvez realmente, seja uma forma deliberada de exercitar o desapego das coisas e dos sentimentos, principalmente, daqueles sentimentos que nos separam de nossos irmãos consanguíneos ou não, sentimentos que não nos permitem a conexão com o outro e tudo aquilo que ele representa. Nessa perspectiva, a religião assume o seu real sentido, ser “religare”, ou seja, nos relembra como é importante estar em profunda conexão com o outro a ponto de sentir as suas necessidades e complementaridades. Como a personagem Eva faz em sua narrativa quando busca entender o que aconteceu durante a educação-criação do filho que o levou a torna-se o que se tornou. A mãe, Eva, me lembrou de outro personagem, o pai Troy Maxson, interpretado por Denzel Washington no filme "Fences", traduzido no Brasil como "Um limite entre nós". O filme é centrado na vida de um ex-jogador de baseball que nunca conquistou o sucesso almejado. Mais velho, casado, pai de dois filhos e com passagem pela prisão, ele trabalha como coletor de lixo a fim de sustentar sua família. Após muito reivindicar, acaba promovido a condutor do caminhão de coleta e, quando as coisas pareciam estáveis, seu relacionamento com a família desanda. O que me chamou a atenção foi a crueza como aquele homem se conectava com a esposa e os filhos. Reproduzindo em seus relacionamentos as sequelas de sua própria história como vítima da opressão do pai e do racismo institucionalizado. Um homem acostumado ao desamor e a exclusão que também se torna opressor. Um ciclo vicioso que conhecemos. Talvez, algo tenha mudado nele a partir do olhar inquisidor e amoroso da companheira Rose, interpretada por Viola Davis, mas certamente não o suficiente para transformar a sua vida, em vida.

Olhar para si mesmo e enxergar que a maioria dos males que nos atormentam vem daí, talvez seja o ato mais doloroso e ao mesmo tempo o caminho mais curto para a cura. E, assim como no filme, talvez, o olhar que pode nos fazer enxergar, não seja o nosso, mas o do outro. Ou seja, voltamos à necessária conexão que a Quaresma nos propõe.

Adelaide de Paula Santos em 01/03/2017, às 17:22.

Quarta-feira de Cinzas

P.S.: Esse ano não curti carnaval de rua, pois a rua estava cheia de pessoas usando pessoas como fantasia ("blackface" e cia) machistas usando a misoginia para assediar mulheres, sem falar na perpetuação de antigos e dolorosos padrões de cultura cantadas em marchinhas excludentes. Como se tradição e cultura não fossem invenções; chegou a hora de nos reinventar.

Adelaide Paula
Enviado por Adelaide Paula em 01/03/2017
Reeditado em 01/03/2017
Código do texto: T5927531
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