OS INVISÍVEIS

Mesmo sabendo os motivos que provocam a desigualdade em todas as suas peculiaridades, ainda me entristece o fato de que muitos dos meus semelhantes vegetam em um mar de pobreza miserável. Não me refiro apenas à falta de recursos financeiros para a compra das necessidades básicas, mas da falta de perspectivas para traçar novas rotas. O grande romancista baiano, Jorge Amado, em seu romance “Jubiaba”, declara que o negro e o pobre não precisam de escola, não há necessidade de conhecimentos acadêmicos, eles serão criados dos futuros doutores e advogados que agora frequentam os bancos escolares. O episódio que me intrigou e me levou a compartilhar este texto com o amigo leitor ainda não saiu do meu consciente e não sairá até que aprendamos a enxergar o próximo como “Ser Humano”.

Era uma terça-feira de janeiro, eu voltava para casa, quando me deparei com algumas crianças na rodovia pedindo alguns trocados aos motoristas. Para ser justo com aquelas crianças, preciso informar que elas não estavam pedindo e sim cobrando por um serviço executado que facilitava a vida dos motoristas. A pista, aliás, o que ainda sobrava dela, encontrava-se toda esburacada e as crianças aproveitaram para iniciar a operação tapa buraco. O problema é que o material usado pelos operários mirins era de pouca serventia e o serviço desenvolvido por eles logo se desfazia. Era por volta de 12 horas e 30 minutos, divisa da Bahia com Sergipe, imagine caro amigo, o sol e o calor, aliados à poeira, o quão prejudicial à saúde daquelas crianças que trabalhavam sem qualquer tipo de proteção, expostas a todos os riscos possíveis.

Eu não parei, furei o bloqueio e fui surpreendido de imediato por uma dúvida feroz. Deveria ajudar aquelas crianças com umas moedinhas, incentivando-as a permanecerem na mendicância ou seguir viagem e deixar que elas percebam que a solução não é exatamente aquela? Olhe rápido para o entorno e não percebi a presença de adultos por perto e questionei-me em silêncio – Por Aonde anda seus pais? Não quis saber da resposta, pisei fundo no acelerador e fui embora, seguido por outros diversos motoristas que não reduziram se quer a velocidade, pelo que pude perceber através do retrovisor. Os carros passavam indiferentes àquela situação, eram como café frio, ninguém olhava para elas, eram invisíveis.

Tudo isso me inquietou, hoje, uma semana depois, lendo alguns poemas de Manuel Bandeira, deparo-me com um intitulado “O bicho”, leio-o naturalmente. Esse poema fala de um bicho catando restos de comida no lixo, comendo ferozmente tudo que encontrava. A perturbação se deu no final da leitura, quando descobri que o bicho retratado era um homem que faminto buscava saciar sua fome com os restos. Esse poema me fez lembrar das crianças que cobravam pelo trabalho que deveria ser executado pelo poder público sem ônus para os motoristas. O personagem do poema de Bandeira fora também um trabalhador mirim das pistas brasileiras? Mais uma vez vou desapontar o amigo leitor, não responderei a essa questão por ser demasiadamente perigosa.

De fato, por mais paradoxal que seja, parece que habitamos um universo paralelo, juntos, apesar de heterogêneos, seguimos em linha reta, lado a lado, mas não percebemos o nosso entorno. Cada classe social com seus integrantes e uma linha imaginária que repele qualquer tentativa de avanço de uma classe à outra. Aos humilhados e ofendidos, como titulou um de seus livros o escritor Russo Fiódor Dostoiévki, resta a conformidade com a situação da invisibilidade em todas as esferas da vida? Têm a educação como via de acesso à liberdade? Essa resposta eu teria se naquele início de tarde quente, caso tivesse parado, não para dar-lhes moedas, mas para dividir com elas um pacote de biscoite que trazia no carro e que se encontra ainda lá, sem ser consumido e para prosear um pouco. Teria perguntado seus nomes, sobre suas famílias, sobre os sonhos e sobre a escola. Falaria de mim, conversaríamos tranquilamente, como devem fazer as pessoas educadas que vivem em sociedade. Ratifiquei os argumentos de Jorge Amado na obra já mencionada aqui. Não tive a bondade de fazer tamanha benfeitoria, provavelmente porque o grau do meu astigmatismo já se encontrara elevado.

Manoel R
Enviado por Manoel R em 26/01/2017
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