A culpa
O Allis era daqueles sujeitos que achava que o mundo existia para servir-lhe. Nunca foi um exemplo de quem achasse que o trabalho podia ser transformado em solução para o seu conforto material. Desprezava o aprendizado formal, pois entendia que a natureza o havia privilegiado com o saber dos gênios. Aprendeu desde cedo a olhar a parte boa do sucesso dos outros, mas não conseguia enxergar a razão dos seus insucessos.
Era comum encontrar o Allis brigando com um semáforo que fechara. Ele sempre estava certo, afinal, os gênios não erram, no máximo se enganam. Dispunha de poucos recursos, o que sempre atribuiu a causa a uma armadilha planejada pelo destino e a uma dúzia de pessoas invejosas que torciam para que o mundo fosse injusto para com ele.
Intrigado com o modo de ser do Allis, alguns arriscavam dizer que esse jeitão de reclamar de tudo e de todos devia-se a traumas ou a questões mal resolvidas da sua infância. Conta-se, por exemplo, que uma das manias de brigar com entes inanimados tem sua origem numa briga feia que tivera a sua mãe com uma pequena moto de brinquedo, quando esta virou e o Allis se machucou.
O mundo para o Allis era naturalmente gris, coisa que teve quem arriscasse que ele usava lentes de contato de coloração em tons de cinza. Já grandinho, quando estava “inconscientemente” frustrado costumava descarregar a sua ira nos pais e, como era de costume, na falta de argumento na discussão, apelava para a máxima: “Eu não pedi para vir ao mundo; a culpa é de vocês”. Pronto, ele transferia para os pais a culpa de estar de mal com a vida e “tudo estava resolvido”.
O trabalho. O trabalho não era bem visto pelo Allis, ou melhor, ele achava que a rotina do trabalha era algo reservado aos miseráveis, a exemplo do modelo da era medieval, mais precisamente na península Ibérica, onde o título de nobreza só era legitimado às famílias que comprovassem que, por quatro gerações, não tinham “colocado a mão na massa”. Ele nunca conseguiu enxergar que o ter ou acontece por herança ou pelo trabalho. Por outro lado, quando ele citava que o fulano de tal estava “bem de vida”, ele nunca lembrava que esta mesma pessoa trabalhara quinze hora por dia durante trinta anos. Que outros, invejados ou admirados, tinham passado mais da metade de suas vidas atrás de um balcão fazendo tarefas por impositiva necessidade de sobrevivência.
Talvez o senhor Allis ainda não tenha entendido que o modelo que vivemos não é o idealizado pelo Thomas Morus e sua Ilha da Utopia, mas que vivemos numa sociedade moldada em princípios capitalistas, onde as regras é a remuneração do trabalho pelo capital e o capital pelo capital. Quiçá, o senhor Allis não percebera que a vida é feita de escolhas e as oportunidades são lançadas para todos e, quando estas não aparecem, precisamos criá-las.
Nota: qualquer semelhança dos nomes citados nesta crônica com a vida real é mera coincidência.