A Passageira
O alto-falante da rodoviária anunciava a saída dos ônibus naquele horário.
O motorista já ligava o motor quando dona Deolinda, num vestido azul coberto de conchas imitando o fundo do mar, bate na porta.
- Deixa eu entrar. – grita para o homem que abre de imediato a porta.
- A senhora tem passagem?
- Tenho, mas é para 8 horas.
- Esse ônibus é das 7 horas. A senhora vai ter de esperar o seu horário.
- Mas eu estou vendo lugar vazio, e já que estou aqui...
- Não posso fazer nada, isso é com o fiscal.
- Que está acontecendo? – o fiscal pergunta.
- Quero viajar nesse ônibus. – ela mostra a passagem para o fiscal.
- Esse ônibus já deveria ter saído, a senhora espera o das 8 horas.
- Eu vou nele ou ninguém sai daqui.
- Manda essa velha daqui, tenho de voltar ao Rio ainda hoje. – fala um rapaz de cara emburrada.
O fiscal, só por causa do comentário, decide trocar a passagem de Deolinda. Tudo resolvido ela entra e vai sentar do lado do rapaz mal-educado.
- Sei que sou velha, mas não precisava dizer, eu também tenho pressa de chegar ao Rio, vou voltar ainda hoje lá pela tarde.
- Não quero conversar. – fala o homem ríspido.
- Você mesmo mandou que viesse aqui.
- A senhora entendeu tudo errado, eu falei DAQUI.
- Não é a mesma coisa: aqui, daqui.
- Sem conversa, tá?
- Não consigo viajar sem conversar.
- Então vá pra outro lugar.
- Não tem mais nenhum lugar vazio, eu vi.
- Que é que eu fiz! Já estou puto.
- Que é isso menino? Qual o seu problema?
- Não tenho problema e se tivesse não ia contar pra senhora.
- Por quê? Se abra comigo, você não me conhece, não vai pagar nada e seja lá o que for, é só botar pra fora e aí acaba a raiva.
- Que raiva, da onde a senhora está vendo raiva em mim?
- Essa expressão na sua testa é de raiva. – toca no rosto dele - Vai falando, sou toda ouvidos.
- Vou trocar de lugar com alguém. Quero ficar só com meus botões.
- Meus botões? Isso é coisa de velho. – ela olha pra ele com doçura.
- É, realmente estou ferrado.
- Feche os olhos e comece a falar, estou ouvindo.
- Alguém que trocar de lugar comigo? Preciso de silêncio. – pergunta ele já de pé dirigindo os demais passageiros.
Um silêncio se fez, mostrando que ninguém estava interessado em mudar de seu lugar.
- Como é o seu nome? O meu é Deolinda, mas pode me chamar de Linda.
- Linda? Só me faltava essa.
- Se não quiser dizer seu nome vou chamá-lo de Mané.
- Meu Deus!
- Relaxe, vai fazer bem. Aconteceu alguma coisa pra tanto azedume, vai, fala?
Depois de quase quinze minutos “Mané” resmunga. Deolinda olha pra cara dele e sorri. Encosta sua mão na mão dele e não vê rejeição. Cantarola uma canção com a boca fechada. De repente “Mané” começa a falar.
- Queria surpreender e fui surpreendido. Encontrei minha namorada dormindo com outro cara. Imagine, pego folga extra pra estar com ela e ela faz extra na cama com outro. Vou acabar com a raça dos dois, logo hoje que deixei a arma no quartel.
- É militar?
- Sou. Troquei com um colega pra vir até aqui e passo por esse vexame. Safada. Piranha. A sujeita não merece viver.
- Por que não?
- Porque não o quê?
- Ela não merece viver? Só porque estava com outro?
- Ela me traiu, me botou chifres.
- Ah! Perguntou a ela porque fez isso?
- Não, se perguntasse não iria responder.
- É marido dela?
- Sou o homem dela.
- Parece que não é mais.
- Ela jurou amor eterno.
- Morando em cidades diferentes?
- O que isso tem a ver? Eu trabalho no Rio e ela em Macaé.
- Mané, só o amor une as pessoas. A paixão queima, o ciúme adoece, a insegurança só vive falando ao ouvido, resumindo: o amor não convive com os três.
- Ta querendo dizer que não amo aquela vagabunda ou que ela não me ama?
- É, vocês só pensavam no prazer do corpo.
- Ela é muito linda e sensual.
- Viu? É verdade então, se fosse amor você diria em primeiro lugar: eu a amo, ela é maravilhosa.
- Eles merecem um tiro na cara.
- É a primeira vez que foi traído?
- Claro, e a última.
- Já traiu?
- Nunca.
- Será? Pense um pouquinho.
- Se estou com uma pessoa , sou fiel.
- Pense um pouquinho mais.
A conversa foi um verdadeiro duelo até quase chegar à ponte entre Niterói e Rio.
- Preste atenção e me diga: o que vê nessa ponte? Pense.
- Que tem uma porção de carros.
- O que mais?
- É muito longa.
- Mais o quê?
- Tem muita água por baixo.
- E...
- Une duas cidades.
- Hummm.
- Tem alto e baixo, faz curva, tem várias saídas...
- Está entendendo. Bom.
O rapaz começa a rir quando o ônibus chega à plataforma e se levanta pra pegar sua bolsa de viagem que está no porta bagagem. Quando olha para o lado procurando aquela velha que se chamava Linda, não vê ninguém. Desce e pergunta ao motorista pela velha tagarela, pois queria agradecê-la e convidá-la para um suco.
- Que velha rapaz? Você viajou sozinho, eu heim! Cada maluco.
O rapaz surpreso fica olhando para o nada.
- Meu nome é Rafael, Linda!
Ao descer do ônibus no Leme, Rafael olha para o mar e vê um ambulante no calçadão estendendo uma canga para uma garota, com as estampas do vestido de Linda.
Resolve se aproximar dela e se apresenta:
- Rafael.
- Linda. – ela sorri.