AMIGO DA ONÇA
Helena era bela, muito bela. No fulgor de seus 17 anos, pele alva, macia, sedosa, cabelos grandes e encaracolados, corpo esguio e sedutor. Helena era uma beldade. Não foi à toa, que me apaixonei por ela por um tempo, paixão que foi correspondida pela jovem. Corria o ano de 1985, e alguns remanescentes do que fora o grande, e atuante grupo de teatro amador Pinto Martins, teimavam em dar continuidade às atividades, mesmo indo de encontro a todas as dificuldades, numa verdadeira e heróica luta do Rio contra o Mar. Destes estóicos e pertinentes componentes, lembro-me, salvo memória, de alguns: Totó, Tadeu, José Osmar, Josivan, Graça, Luduvica, Arnaldo, eu, além de uma meia dúzia de jovens que vieram somar conosco, na maioria estreantes, entre eles estava a bela Helena.
Sempre estávamos ensaiando e apresentando peças teatrais. Na oportunidade ensaiávamos uma peça da qual não me recordo o nome. Era a história de um coronel de terras, intransigente, daqueles que têm o rei na barriga, que manda e desmanda a seu bel-prazer. O famigerado coronel, de tanto aterrorizar, massacrar, até matar, começou a ser combatido pelos colonos e moradores da região, vindo a sucumbir e ser derrotado. Este era o enredo da história. Lição de moral do tipo: O bem, sempre vence o mal.
Eu fazia o papel do dito cujo. Numa das cenas, no terceiro ato, o cenário era um bar, tipo boteco de interior: um balcão, algumas prateleiras cheia de garrafas, etc. O dono do bar ficava atrás do balcão, no caso a dona. O papel era vivido por Graça. O coronel – que era eu – chegava acompanhado de um compadre, pedia duas doses de cana ao bodegueiro, e brindava com seu comparsa, ficando a tecer comentários sobre o que iria fazer aos seus inimigos, com intuito de amedrontá-los, pois sabia que o dono do boteco, no caso a dona – Graça - era uma fuxiqueira de marca maior. O compadre do coronel, era vivido por Helena, embora fosse um papel de homem, ela por querer contracenar comigo, insistiu em fazê-lo, para isso ,precisava se caracterizar, ou seja, vestir roupas masculinas.
Quando enfim chegou o dia da estréia, tudo preparado, ensaiado, cenários, etc. O auditório lotado, lá fomos nós. A peça desenrolava-se normalmente. Ao chegar ao terceiro ato, aqui já comentado, entram o coronel (eu) e seu compadre (Helena), totalmente caracterizada com indumentária masculina. No palco, um cenário em forma de boteco nos aguarda. A dona do bar (Graça). Tudo em ordem. A representação tem início. O coronel fala:
- Boas tardes! Cumadi ,sirva aí duas doses de aguardente bem reforçada. Uma pra mim, e outra aqui pro meu cumpadi. A dona do bar responde:
- Boas tardes, coronel, e pro senhor também!
- Boas tardes, minha senhora - diz o cumpadi.
Ato contínuo, Graça pega o litro na prateleira, serve duas doses em dois copos, e coloca em cima do balcão, dizendo:
- Pronto, aí está. O coronel pega um copo, dá o outro ao seu compadre, e levanta um brinde dizendo:
- Saúde! O compadre- Helena- levanta o copo e responde:
- Saúde, coronel! Ambos levam os copos à boca e sorvem o líquido de uma golada.
Para entendermos o que se passa, de agora em diante é necessário que saibamos que nos ensaios, as garrafas de pinga eram cheias de água, e os brindes da mesma forma e, assim, era para ser continuado. Acontece que Graça querendo dar um toque de realismo, trocou a água por cachaça de verdade – aguardente branca. Quando eu tomei, senti, mas como já era acostumado e antes de iniciar a peça, havia tomado umas três, para dar coragem, encarei numa boa. O diabo foi com Helena, pois a coitada nunca havia provado cachaça, e engoliu de uma só vez, pensando ser água como era o combinado.
Helena engasgou-se. Sua pele alva começou a ficar vermelha, seus lindos olhos azuis arregalaram-se e começaram a lacrimejar. A voz não saía, e não conseguia respirar, estava ficando arroxeada, entrando numa espécie de convulsão. Foi quando, eu vi que tinha que fazer algo, não só para salvar o espetáculo, mas principalmente para salvar minha bela Helena. Saindo do papel - é por isso, que o público não sabe o papel do ator – improvisei: Bati com a mão aberta em suas costas, e falei:
- Que é isso, cumpadi? Tá se engasgando? Nem parece que é acostumado a tomar umas biritas.
À proporção que falava, batia com a mão espalmada fortemente em suas costas. Aos poucos, Helena foi tossindo, o ar foi voltando, suas feições foram normalizando, enquanto eu a acalmava falando baixo em seu ouvido:
- Calma! Respire fundo! Recupere-se, eu aguento as pontas, só fale quando puder. Helena entendeu, acalmou-se, e depois retomou seu papel.
O público até se divertiu, pensando que tudo aquilo fazia parte do roteiro. A peça foi um sucesso, tal qual esperávamos. Graça desculpou-se dizendo que tinha feito com a melhor das intenções. Desculpas foram aceitas, mas partindo de Graça, nunca viríamos saber se foi intencional ou não.
Helena era um anjo, perdoou, e no final, demos boas risadas.
Ignácio Santos