O velho e a voz
“Velho não tem voz nem vez”
Ouvi essa frase da boca da minha avó esses dias. Já tinha ouvido outras vezes, mas nunca tinha me incomodado tanto quanto desta vez. Talvez porque tenha vindo de uma pessoa tão próxima a mim, a quem amo muito. E fiquei pensando naquilo enquanto ela continuava falando: “Ninguém ouve a gente. Ainda estamos falando e outra pessoa atravessa a conversa e nem espera a gente acabar”. Fiquei lembrando de quantas vezes eu mesma fiz isso. Às vezes eu sei que ela só quer contar as histórias, se sentir importante, então me sento e deixo-a falar. Ouço a mesma história vinte vezes, com cara de surpresa, como se fosse a primeira. Mas muitas vezes eu apenas estou ali de corpo, meus pensamentos estão longe e meus ouvidos ausentes. E ela fala, fala, fala, mas eu não ouço nada. Quando termina e percebo o que aconteceu, sinto-me envergonhada. Penso: “E se essa for a minha última conversa com minha avó? E se eu chegar em casa hoje à noite e ela não estiver mais? Perdi um pouco de vida...”
Há uns anos ela completou 80 primaveras. Fiquei incumbida de contar a história desses oitenta anos, com uma apresentação de fotos e fatos. Fiz uma pequena entrevista com ela, já que muitas das histórias eu já sabia de ouvir diversas vezes. Peguei várias fotos e documentos e tive que reduzir 80 anos em 15 minutos. Na hora da apresentação em si, fui às lágrimas, vendo e sentindo quantas coisas já foram vividas por ela. Amor à primeira vista, casou-se em 04 meses aos 19 anos, morou em condições precárias, teve 05 filhos na miséria, sem recurso algum, viveu três anos de tratamento de câncer do marido, o que culminou numa viuvez aos 32 anos. Some-se a isso o desprezo dos familiares, os assédios sem fim, a luta para sobreviver num lugar inóspito. Tantas histórias, tantas vivências, tantas experiências, e ninguém quer parar para ouvir. Sempre achamos que não há nada de importante a ser dito, que o velho não sabe de nada. Mas a verdade é que o velho sabe muito e tem muito a ensinar. É muito triste olhar para trás, ver todos os caminhos por onde se caminhou, e aquilo ser apenas uma lembrança sem compartilhamento. Morre junto com a gente, conhecimento que vai pro caixão e fica perdido.
Hoje investi um tempinho num papo com minha avó. Dentre outras coisas, ela me disse estar intrigada há um tempo com o significado da palavra “generosa”. Algumas pessoas haviam dito que ela era uma mulher muito generosa e ela sentia que isso era um elogio, mas queria saber exatamente o que significa. Tenho noção do que a palavra quer dizer, seu sentido, mas fui procurar no dicionário a definição exata da palavra, para satisfazer-lhe a curiosidade. Em resumo, generoso é aquele que acrescenta algo na vida de alguém, que abre mão de seus próprios interesses em benefício de outros. Pude ver o brilho em seus olhos ao ouvir a definição daquele elogio que ela já recebera tantas vezes.
Hoje, com sua mobilidade debilitada, dificuldade para caminhar, ela se limita a ficar em casa e poucos compromissos fora, como ir à igreja e à casa de alguns familiares mais próximos, desde que não haja escadas. Em outros tempos, era assídua visitadora dos mais necessitados e dos amigos antigos, pessoas que passaram por sua vida e deixaram marcas de saudade. Ela sente falta desse contato, sente falta dessa liberdade de sair, ir e vir, de viver. Às vezes a vejo num cantinho, amuada, absorta em seus próprios pensamentos. Já que não tem voz, nem vez...