O corpo na calçada
Em meio à chuva, estirado na calçada, um corpo coberto por papelão e um fino lençol sujo. Ao seu lado, o fiel amigo de quatro patas dormia encolhido pelo frio.
Transeuntes, protegidos por seus guarda-chuvas e pelos seus grossos casacos comprados na fronteira, iam e vinham, passando por aquela calçada sem notar o corpo. Uma garotinha, de luvas coloridas e tênis quentinhos, chegou a notar o fiel companheiro, mas sua mãe, apressada, não prestou atenção aos comentários da filha, ensinando-a, quase sem querer, a lição de seguir em frente sem olhar para trás.
A água continuava a cair e a levar o lixo pelas ruas e bueiros; embaçava o vidro dos carros, que desaceleravam e, vez ou outra, chocavam-se uns nos outros. Ela também continuava a cair sobre o corpo estirado na calçada e no fiel amigo de quatro patas, agora desperto, observando as pessoas passarem.
“Com fome?” pergunta um rapaz de capa preta. Ele estende ao fiel amigo um pedaço de bolacha e vai embora. O amigo vira-se e lambe o corpo, tão frio quanto o vento e a água.
Passa-se um tempo e a chuva cessa. O leal companheiro de quatro patas levanta-se, agitado, chacoalhando a água do pelo. Ele late para o corpo, na esperança de receber um afago ou mesmo um pouco de comida — era sempre assim: após um aguaceiro o homem acordava, passava a mão nele e, depois, dividia o pouco que tinha de comida. Hoje, no entanto, o homem permaneceu deitado, imóvel.
Pego de surpresa, um laço envolve o pescocinho do fiel companheiro e o puxa para um camburão, levando-o embora. Ele desespera-se, latindo freneticamente na esperança de que seu amigo se levantasse e o resgatasse, mas o corpo permaneceu ali, estirado na calçada e invisível aos olhos dos transeuntes que iam e vinham embrulhados em seus casacos grossos comprados na fronteira.