Fazendo a Diferença – O Dia Em Que o Amor Falou Mais Alto Que a Ignorância
Era terça-feira e eu havia planejado uma aula bem atrativa para minha turma do 7º ano. Tomei um gole de animação como quem toma um delicioso café, atravessei o corredor e me deparei com a porta da sala e os alunos um tanto agitados. Entrei. Saudei os alunos com um sonoro “bom dia!”, carregado de entusiasmo e dei início ao meu trabalho. Não era fácil a tarefa de entretê-los, mas com bastante jogo de cintura eles começaram a prestar atenção. Era um documentário interessante, muito bem trabalhado, por sinal.
O documentário estava quase no final, quando uma de minhas alunas mais aplicadas – com lágrimas nos olhos – pediu para ir ao banheiro e aquilo me chamou atenção. Por lidar com aqueles jovens diariamente, acabamos por conhecê-los, traçarmos um perfil, pelo menos visual, deles, e aquele comportamento fugia do padrão dela. Autorizei sua saída e pedi ao inspetor que ficasse com a minha turma até eu retornar. Precisava saber o que ocorria e se poderia ajudar de alguma forma.
Sempre fui um professor aberto a ouvir os alunos, na certeza de que muitos deles não tinham ninguém em casa ou pessoas da família para ouvi-los... É um ato humano dedicar cinco minutos para aconselhar, entender, direcionar um jovem em formação. Você acaba por ser referência dele. Pois bem, era minha hora de intervir.
No momento em que ela saía do banheiro a abordei. Um tanto assustada, a levei até a biblioteca e comecei o diálogo...
- Mocinha, não pude deixar de notar seu feição de preocupada quando me pediu pra ir ao banheiro... O que aconteceu?
- Ah, professor... Eu... Eu não tenho com quem me abrir e... É uma situação meio complicada, sabe... – Senti uma frustração ao ouvir esse relato e só acenei com a cabeça pra que ela continuasse.
Assim ela fez: - Bem, professor – se encheu de coragem e começou -, eu ando meio pensativa e preocupada, não sei bem explicar. Eu sempre ouvi das pessoas que o certo é menino ficar com menina. Eu tenho treze anos e eu acho que não sou uma pessoa certa. Eu nunca olhei para um menino e gostei dele, mas de umas semanas pra cá eu gostei de uma pessoa. E ela não é um menino, professor...
Ela começou a chorar novamente e pude compreender o quanto é importante ouvir as pessoas. Ela, uma jovem em formação, estava se sentindo errada por gostar de uma menina. O que eu diria agora? Antes disso, ela me perguntou:
- Professor, eu sou errada por gostar de uma menina? – essa pergunta me fez refletir sobre a vida.
Quantas vezes um ou uma jovem passou por isso na vida calado (a), tendo de enfrentar sua própria consciência (ainda em formação), numa sociedade tão preconceituosa que designa como sendo “certo” só um modelo de relacionamento? Será que não se pode haver amor entre duas pessoas do mesmo sexo? Bem, depois de minha reflexão, tive de responder minha aluna...
- Olha, mocinha – comecei -, você não é errada em gostar de outra menina. Por mais que as pessoas achem errado, é seu jeito de amar e você não deve se importar com isso. Por mais que as pessoas tenham preconceito, você não pode se privar de amar. O importante é que você tenha plena consciência daquilo que você deseja. Se for realmente isso, vá adiante.
- Mas professor, minha família não vai me aceitar, tenho medo de contar pra minha mãe e ela não gostar mais de mim... – Isso doeu mais de ouvir.
Tive uma ideia! Contei a ela e pude ver um sorriso abrir naquele rostinho, antes frustrado, agora esperançoso.
[...]
Tudo organizado para a reunião de pais. Projetor, som, slides. O diretor deu início e passou à mim a palavra. Comecei.
- Bom dia! Senhoras, senhores, peço respeitosamente que todos prestem bastante atenção. Imaginem vocês na posição de um professor, que tem contato diário com mais de cinquenta crianças e adolescentes. Imaginem vocês, tendo de, além de lecionar, ter a responsabilidade de ser direcionador desses jovens em formação. Seria difícil, certo? – Ouvi um uníssono “Certo” ecoar naquela sala. – Pois bem, peço que atentem à uma pergunta frequente que eu recebo de todas as minhas turmas. - Apresentei o primeiro slide e nele continha uma folha de caderno rasgada, escrito: “Por que menino não pode amar menino e menina não pode amar menina?”. Começou ali um zum-zum-zum que não estava nos meus planos e pedi licença para prosseguir. – Silencio, por favor... – Eu apelei – Senhores, senhoras... É corriqueiro ouvir essas perguntas em sala e eu gostaria que alguém se candidatasse a responder. Por favor, quem quiser levante a mão... Uma moça, de aparentes trinta e poucos, quarenta anos, pediu a palavra e eu concedi.
- Professor, nós aprendemos que o certo é homem com mulher, mulher com homem e pronto!
- Certo, senhora. Agora, imagine, por exemplo, sua filha, que você gerou, criou, e que tanto ama estava chorando no banheiro da escola por se achar uma pessoa ruim. Por que ela se acharia ruim? Por que ela já tentou gostar de meninos, mas só gosta de meninas e todos dizem ser errado. No mundo em que vivemos, vemos atrocidades acontecendo por conta da não aceitação das diferenças, veja: “A cada uma hora um homossexual sofre violência no Brasil”. – comecei a ver caras espantadas observando o segundo slide. Prossegui – Imaginem vocês sendo os pais de um desses agredidos, simplesmente pelo fato de que eles amam pessoas do mesmo sexo. Vocês, pais conversam sobre isso com seus filhos? Vocês não podem deixar o preconceito começar dentro da casa de vocês, senhores e senhoras. Aqui na escola temos uma postura rígida a respeito de preconceitos e discriminação de qualquer natureza, mas e nas ruas? Nas casas de vocês? Não há nada errado em duas pessoas se amarem, independente de for menina com menina, menina com menino, menino com menino. Errado é, em pleno século XXI, ainda existir pessoas que não aceitam o amor alheio. Cada um tem a liberdade de escolher aquilo que quer para a própria vida, sem que as pessoas julguem sua decisão. E vocês pais, responsáveis, devem dialogar com seus filhos, entende-los e amá-los como eles são. Só assim é que nossa sociedade se tornará melhor. Obrigado.
Terminei minha fala e pedi licença para me retirar. Outros professores ainda falariam, eu tinha que ir para minha turma, para ouvi-los, ensiná-los, e para aprender.
No dia seguinte, ouvi batidas na porta da sala onde eu estava dando aula, era o inspetor avisando que uma mãe gostaria de falar comigo na sala dos professores. Era natural essa rotina de receber pais que não compareceu a reunião, que gostariam de saber como vai o filho naquela matéria específica... Fui eu ao encontro dessa mãe. Ao chegar, notei uma moça de uns quarenta anos, longos cabelos escuros, um olhar reflexivo, sentada a minha espera. A cumprimentei e me sentei numa cadeira próxima. Ela respondeu ao cumprimento e começou a dizer:
- bem, professor, eu sou a mãe da aluna que o senhor conversou na biblioteca. Estive na reunião ontem e fiquei muito sentida com a sua fala. Quando minha filha chegou da escola e foi direto para o quarto pude notar o quão imprudente eu fui na criação dela a ponto de ela precisar desabafar com o senhor. Ainda bem que ela encontrou uma ótima referência. Conversei com ela e choramos muito enquanto ela me dizia gostar de outra menina. A gente nunca acha que uma situação dessas vai acontecer conosco até que aconteça e tomamos um choque. Mas graças ao senhor pude abrir meus olhos. Não a amarei menos por ela gostar de outra menina, porque o amor vence qualquer barreira. Não será preconceitos medíocres que será o impedimento da felicidade da minha menina, no que depender de mim. Só vim agradecer a atitude mais humana que você teve em saber aconselhar minha filha e posteriormente todos os pais na reunião de ontem. Minha filha será feliz com a companheira que ela quiser, graças ao senhor. Só de pensar que ela poderia pensar em suicídio caso não tivesse falado com o senhor... Não sei o que seria de mim sem minha menina. E, de mais a mais, como o senhor disse: “cada um tem a liberdade de escolher aquilo que quer para a própria vida, sem que as pessoas julguem sua decisão”.
Meus olhos lacrimejaram ao ver que fiz a diferença na vida daquela jovem menina de treze anos de idade, que inicialmente sofria por não seguir um “padrão” imposto pela sociedade, sem saber direito o porquê tinha que ser assim e agora tinha o apoio de quem mais amava na vida para buscar sua felicidade a sua maneira. Voltei para minha turma radiante e quebrei uma regra: peguei uma caixa de som portátil, pluguei meu aparelho celular e compartilhei com a minha turminha a minha felicidade ao som de “toda forma de amor”.