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O DIA QUE VALDEVINO SE APAIXONOU


Valdevino anda atordoado com o tempo que lhe escorre pelas mãos. Acabou de fazer oitenta e sete anos e não se conforma com a preguiça que instalou dentro de si. Valdevino não anda com mais vontade de trabalhar. Os ossos de suas mãos têm lhe incomodado com uma dorzinha chata e persistente. O médico lhe disse que é uma tal de tendinite mas, em toda sua vida, nunca ouviu falar nisso, só pode ser invenção moderna. Seu ouvido também anda incomodando. Já não escuta tão bem. O azeite doce quentinho que usa desde criança para essas “bobagens” de dores não está mais fazendo efeito. Deve ser azeite falsificado, não fazem mais azeite como antigamente. E a dor no ombro então. Nem todas as promessas que faz para Nossa Senhora tem lhe valido. Parece que carrega um saco de cimento nas costas o dia inteiro. O coitado tem andado tão curvado depois que lhe nasceu uma montanha abaixo do pescoço. Valdevino continua levantando cedo. Muito cedo. Afinal, Deus ajuda quem cedo madruga. Quem sabe ele perceba que Valdevino ainda anda fazendo a sua parte e dá um jeito de desenferrujar as dobradiças do seu esqueleto?  Valdevino não se conforma. Perto de sua casa tem um tanto de oficinas de consertos carros. É só chegar uma lata velha toda amassada para os mecânicos darem um garibada e o carango sair novinho em folha. Será porque não inventaram ainda uma oficina de gente, pensa Valdevino. Eles bem que poderiam dar um jeito em mim. Bastaria dar umas marteladas com aqueles martelos de borracha para desamassar o que for necessário, desmontar e trocar as partes podres, colocar um óleo melhorzinho, dar uma pintura nova, e pronto. Valdevino dispensa polimento. A vida já lhe poliu o necessário. Mais polimento só vai servir para fachada ficar mais chique e ele não liga mais para isso. De uns tempos para cá, Valdevino deu para ficar rouco. Logo ele que sempre adorou cantarola enquanto trabalha. Affe!!! Isso é muito para mim, diz ele. Outra coisa que anda lhe chateando é quando chega em casa e sua mulher está na frente da televisão assistindo novelas. Não diz nada, mas fica muito irritado porque detesta novelas. Valdevino resolveu pintar os cabelos. Comprou uma tinta que lhe indicaram num supermercado, nesses supermercados de bairro onde todo mundo conhece todo mundo, e não perde tempo. Entra no banheiro, fecha a porta e fica lá horas a fio. Chega à sala com a cabeleira avermelhada e fica nervoso ao perguntar a sua esposa o que acha. Lídia é daquelas mulheres que sempre concorda com tudo e que tudo está bom. Ao olhar para o marido com o novo visual, não responde nada, mas tem um acesso de riso que,  na verdade,  é uma resposta sem palavras. Valdevino também não diz nada e sai pisando duro e pensando, ela me paga. Pega o cachorrinho e vai dar uma volta na praça. Valdevino vê uma moça bonita sentada num dos bancos. Há muito ele não conversa com essas moças modernas. Elas são muito ousadas e ele não tem dado mais conta disso. Mas resolve se arriscar. Pede licença para se sentar perto dela e não demora a puxar uma conversa. O coração do velho Valdevino acelera e ele perde o controle de sua emoção. Esquece-se das dores, do murundu de suas costas, esquece-se da irritação que o levou até ali, esquece-se até que anda  muito injuriado e se empolga. A cada palavra da moça bonita, seus olhos ficam brilhantes e irradiam uma grande alegria. A moça se despede. Dá um beijo no seu rosto e vai embora. Valdevino nem se lembra mais que anda rouco e começa a cantarolar alguma coisa que lhe faz feliz e volta para casa sonhando com o dia seguinte, na mesma hora e no mesmo lugar. Valdevino se rende, acaba de se apaixonar pela moça bonita e, o seu coração agora tem motivos para  empolgação, e os seus cabelos, ah! os seus cabelos, de agora em diante,  vão ficar vermelhos, porque vermelho deu sorte,  devolveu-lhe numa boa hora essa tão esquecida paixão.