Enquanto organiza sua alma
Sei que apareci em uma hora conturbada e que sua alma andava muito bagunçada. Cheguei apenas para tomar um simples café – ou um chimarrão, tanto faz - pode-se dizer, mas algo me fez querer ficar. Ah, claro, contra sua vontade, mas permaneci por perto e continuo por aqui por essas bandas.
Lembro-me quando dissestes que tudo estava uma bagunça e que precisava do seu tempo para colocar ordem na casa, pra organizar a alma. Lembro também que “não era nada comigo”, que não era por causa do meu signo e minhas manias que te irritavam, e talvez não fossem essas coisas mesmo, até por isso permaneci aqui.
Continuei por perto, espiando pela fresta da janela sua arrumação, ou melhor, sua tentativa de se organizar para depois receber minha visita. Mas vi nesse meio tempo que eu não estava sozinho nessa espionagem, que outros aguardavam tão ansiosos quanto eu para que tu abrisses a porta. Alguns, de tão desesperados conseguiram pular sua janela e fizeram visitas esporádicas. Talvez a sua bagunça e a desordem desses parecessem um pouco, fazendo que você não se importasse com essas visitas rápidas, daqueles que só passavam por ali e logo iam embora. “Não era nada comigo”, claro, entendo perfeitamente.
O que você não entendeu quando cheguei é que eu sabia de toda a zona que estava sua vida, ou melhor, imaginava. E quem disse que a minha estava diferente? Acho que não fui claro o suficiente ao dizer que estaria do seu lado sempre que precisasse. Eu não me importaria em tentar organizar suas bagunças contigo, na real, seria um prazer dobrar todas as suas frustrações e decepções e encaixotá-las, despacha-las pra algum lugar qualquer.
Quanto suas tarjas pretas, eu já tinha tudo em mente, ia joga-los fora pouco a pouco, até que não sobrasse mais nenhum e você nem sentiria falta deles. Nós estaríamos bebendo juntos aquela garrafa de uísque que normalmente você bebia sozinha. Assim tudo ficaria menos pesado pra ti. Mas claro, te deixaria livre para abrir outra garrafa e beber só caso quisesse. Enquanto isso, eu ia limpando os cacos espalhados a sua volta pra que não se cortasse com eles novamente.
Tudo isso, claro, teria acontecido caso você entendesse que não bati à sua porta apenas para dizer um “oi”, que na verdade quis entrar e tomar um café e, talvez, ficar para o almoço, pra janta e pra outras coisas.
Já esperei na porta, tentei espiar por debaixo dela, tentei ficar observando pela fresta da janela, já subi no telhado. Enfim, tentei de várias maneiras, mas acho que talvez “não seja nada comigo” mesmo e, claro, deixo que sejas cada vez mais de você mesma, que se descubra e que se ame cada vez mais para, talvez um dia, poder compartilhar comigo um pouco desse amor. Enquanto isso, passeio pela redondeza, olho para outros lares e espio pelas portas, na esperança de que alguma delas se abra e me convide para entrar e, talvez, ficar.