Crônica na feira

Escrever é fácil. Você começa com letra maiúscula e termina com ponto final. O meio você preenche com ideias. Tão fácil lição passada pelo grande Pablo Neruda, tão fácil que desafiou-me a tecer algumas palavras na página em branco. Pronto, já iniciei com letra maiúscula e já coloquei também o ponto final... mas e as ideias no meio? Parei como quem vê um cadáver a assombrar, sim, porque texto sem ideias é um cadáver de pele e osso e alma alguma.

Que mentiroso o Pablo Neruda. Escrever não é fácil coisa nenhuma. Como fazer o pensamento que é alma se materializar em palavras? A resposta que veio a mim foi: se para escrever preciso pensar, então que venham as lembranças, não uma qualquer, mas aquela que tocou-me, deixou-me intrigada, causou-me espanto... Mas aí, amigos, vejam só que peça a memória pregou. Poderia ser este escrito sobre aventuras de cavaleiros, amores impossíveis com trágicos finais, revoluções, batalhas sangrentas, mas não. Foram os urubus da feira de Bragança o meu último espanto. Bela memoria essa minha. Então, vamos a Ode do urubu do caeté.

De penas pretas eu sabia que era, que seus pés são brancos porque ele defeca em si mesmo também e sabia que ele faxina o ambiente de toda podridão que aqui jaz. O que ainda não havia dado conta era, até deparar-me com alguns deles, de como o urubu de Bragança é gordo e robusto. Tanto peixe jogado às margens do braço da maré e eles passeando pesados, numa espécie de ostentação aviária.

Lembrei dos urubus de Timboteua, tudo magrinho... O cachorro não pode nem pegar um sol no quintal que eles já pensam que é o almoço e descem em bando. Os de Bragança, não: São a nata da urubuzada, Provavelmente, só perdem para os do ver- o – peso que até cartão postal já viraram e, claro, para os que estampam a bandeira do Flamengo... Os tops dos tops dos tops.

Então, lá vou eu passeando pela orla, sentindo-me a turista encantada com as embarcações quando um urubu gordo passou voando de raspão por minha cabeça. Que susto grande, que arrepio, que cheiro forte, bicho atrevido. Passou e pousou na lama, dando dois pequenos saltos amortecedores e seguindo com sua caminhada imponente, girando o corpo para um lado e para o outro. Devia estar achando-se o próprio urubu rei.

E eu, veja só, vingativa pensei: Tanta ave gorda por aqui. E lá veio a imagem do ensopado do bicho: Refogadinho do urubu rei do Caeté, lavados com limão baiano, com favaquinhas e chicórias inteiras, acompanhado de talos de jambu e quem sabe uma bebida seca para acompanhar. Ao lado, um pirão de farinha d’água enfeitado com pimenta de cheiro do caldo restante. No prato branco de porcelana, um cubo de arroz misturado com castanhas do Pará para dar um crocancia e enfeitado com uma peninha preta para dar o contraste visual.

Num instante o barulho de um carro que passava me espanta. Saio do transe culinário e passado o estado de loucura, eu aqui, metida a chefe pensando em iguarias exóticas, apertei os olhos enquanto o urubu, abrindo a envergadura das asas, voou rumo a maré. Poxa, disse eu, lá se foi a minha iguaria... Então Que ideia louca me veio, pensar que ninguém mais na face desta terra poderia estar pensando algo como eu naquele instante.

Talvez seja essa também a graça de escrever. Porque todo mundo pode usar uma letra maiúscula no começo da linha e todo mundo pode fazer um pinguinho no final. Todo mundo também pode caminhar na feira, ver o urubu bragantino, mas no meio, tenho certeza, no campo da ideia, ninguém mais se imaginaria comendo o pretinho gordinho do urubu. É essa imaginação criativa e criadora que nos faz únicos como escritores... Potencializa a nossa singularidade diante do mundo todo. Bom, acho que é só... e agora, memória minha, pode repousar e pousar nossos urubus nas profundezas de algum canto dentro de mim. Pablo Neruda não tinha razão: escrever carece de um tanto de loucura despejada no papel. Agora sim: Ponto final.

AlineCs
Enviado por AlineCs em 26/02/2016
Código do texto: T5555997
Classificação de conteúdo: seguro