Cena
Me encontro jogado, no chão imundo dessa ruína que eu escolhi pra ser minha casa, na minha frente vejo um porta, cerrada. Em minha cabeça ficam a flutuar vagos pensamentos de dúvidas sobre o motivo pelo qual ainda moro aqui, talvez o medo da barraca velha que guardo no quintal não suportar a forte chuva que se prepara lá fora, talvez as memórias da morada recém-construída, o tapete de boas vindas que os cachorros da rua levaram, os retratos na parede, que hoje estão todos quebrados, os quadros famosos que ultimamente acumulam poeira dentro do quarto de hóspedes, meu livro de poemas, suas páginas, coitadas... Tiveram que ser usadas quando o papel higiênico acabou há alguns meses, e depois jogadas no lixo do banheiro, pelo menos agora podem transmitir emoções para baratas de coração partido que lá habitam. Estou faminto, lembro-me bem quem não como há algumas semanas, já sinto algumas falhas em meus sentidos, meus reflexos não são tão apurados como antes, o alimento da dispensa acabou e na crise que se estabeleceu não vejo previsão de reabastecimento. Já sem forças, me arrasto, e percebo na cozinha uma enorme pilha de pratos que se acumularam nos jantares de fim de semana, cada prato um pouco mais sujo que o anterior. Em algumas noites sinto frio, mas o vento que o acompanha faz o favor de afastar algumas telhas, no dia seguinte o sol pode entrar pelas brechinhas e por alguns segundos posso me aquecer. As paredes de um velho quarto guardam palavras que provavelmente nunca ecoaram em outro lugar. E a porta ainda continua lá, já pensei em arromba-la, mas percebi que a entrada de volta ficaria escancarada, e no primeiro pensamento de missão fracassada seria possível voltar a esta caverna, coisas que homens de verdade, ainda que desnutridos, não devem fazer. Já sem forças de nem ao menos levantar o olhar, encosto a cabeça na parede e minhas pupilas dão um close em uma chave, junto a um cadeado que se encontram felizes, balançando em um torno que antigamente abrigava uma rede que compartilhava comigo as madrugadas mais felizes. Por treze segundos, olho estagnado para os objetos, e uma força, quase que sobrenatural toma conta de minhas pernas, a lâmpada com mau contato, que horas fica acesa, horas apagada, emite uma luz radiante sobre meus ombros, percebo que em instantes conseguirei levantar, pegarei os cônjuges no torno, a chave atirarei pra bem longe, com a mesma força de uma cortada de voleibol, abrirei a porta gentilmente, e com passos largos sairei e a deixaria se fechar sozinha, sem olhar pra trás. Usarei o cadeado para lacrar a entrada para sempre, e com uma perna de cada vez, andarei por toda a cidade, escrevendo poemas na areia, e esperando ao lado deles que o vento e água venham apaga-los, sem me abrigar em lugar algum, porque quem está na chuva é pra se molhar.