Às vezes o que nos mata não é a fome, mas o que comemos para matá-la.
Muitos confundem fome com vontade de comer. Mas fome mesmo é aquele troço que dá na barriga e só se consegue ouvir o barulho das vísceras roncando. Isso já aconteceu muito com muita gente que conheço. Pessoas que acordam de manhã e não têm nada para comer. Nem pela manhã, nem ao meio dia, nem à tarde na hora do jantar. O tempo passa simplesmente e vamos sentindo fome de verdade. O tempo passa, mas a fome não. O único jeito que temos é tentar enganar a fome, comendo qualquer coisa. O mais comum é aproveitar o que a natureza nos oferece, pois o que ela nos oferece é tudo de graça, graças a Deus. Já pensou se não houvesse as frutas de cada estação. Como seria se não houvesse as mangas do Pimenta, os cajus, o coco babaçu. Estaríamos perdidos.
E quando não se tem este manjar dos deuses! Aí a fome aperta e então apelamos à bondade dos homens. Mas nem se compara! O sofrimento é dobrado. Às vezes eu e meus irmãos saíamos pedindo alguma coisa para comer. Era raro um filho de Deus que nos desse um pedaço de pão. Perguntavam se não tínhamos pai e mãe. Dizíamos que sim, mas o que não tínhamos era o que comer. Mandava-nos trabalhar, como se fosse fácil emprego para um bando de crianças famintas.
Saíamos em fila indiana pela feira da cidade. Comíamos o que encontrasse. Tudo que pudesse aliviar a dor da fome que sentíamos. Era a maior felicidade quando encontrávamos um pedaço de bolo nas lixeiras das lanchonetes. Juntávamos tudo que encontrávamos e íamos para a Praça da Matriz para dividirmos entre nós. Eu como era a mais velha, às vezes ficava sem comer nada, porque tinha pena de ver meus irmãos passando fome.
Voltávamos para casa um pouco aliviados, depois de termos comido restos de alimentos que seriam dados aos porcos. Percebíamos tantos alimentos saudáveis, mas não tínhamos dinheiro para comprá-los. Nossos pais não tinham condições de comprar comida. Eram miseráveis como nós. Nascemos assim e morreríamos assim, porque foi assim que Deus quis que fosse. E nos conformamos com isso, porque desde que eu me entendo por gente, sempre foi assim. Uns têm muito e outros não têm nada. Quem tem muito não quer compartilhar e quem não tem nada só resta se conformar com o destino que teve.
À noite mal conseguíamos dormir, porque a barriga doía. Quando não era a fome que sentíamos. Era por causa dos alimentos podres que havia ingerido durante o dia. Reclamávamos para a nossa mão, mas ela dizia apenas toma um gole de água que passa. A água era, às vezes, nosso único remédio e nosso único alimento.
Então eu ficava deitada na minha rede pensando no destino que tínhamos, eu e meus irmãos. Chorava bastante até adormecer anestesiada pela fome. E não tinha sonhos, apenas pesadelos. Sonhei, uma noite, que tudo aquilo iria acabar. Todo o sofrimento que sentia iria desaparecer, mas quando acordei não lembrava como o sonho poderia se realizar.
A realidade era cruel, mas era continuar, pois estávamos vivos.
Certo dia apareceu um senhor em nossa casa. Talvez tivesse uns oitenta anos. Pele enrugada, olhos bem azuis, a pele com as marcas do tempo, usava roupas velhas e surradas e tinha uma barba branca rala. Papai e mamãe haviam saído de casa. Eu sendo a mais velha recebi o bom velhinho que trazia consigo um pé de macaxeira com as raízes ainda nele. Disse que era para acabar com o nosso sofrimento. Ficamos muito felizes, pois não tínhamos nada para comer. Todos felizes e contentes começamos a preparar a nossa refeição do dia. Uns começaram a descascar a macaxeira, outros ascender o fogo e eu fui limpar a panela.
Depois de algum tempo a refeição estava pronta. Colocamos a macaxeira ainda fumegando numa bacia no meio da sala. Meus irmãos sempre me obedeceram. Então eu pedi a eles que fizéssemos uma oração e que eles só comessem depois que eu provasse o alimento.
Comi um pedaço e já comecei a achar estranho, pois era duro, mas a fome falava mais alto. De repente minha irmã começou a reclamar e disse-me que estava passando mal, pois havia comido um pedaço escondido, já fazia um bom tempo. Foi aí que percebi que não se tratava de macaxeira, mas sim de mandioca brava e que minha irmã estava morrendo intoxicada. Pedi aos meus irmãos que chamassem os vizinhos para nos levar ao hospital. Apaguei, quando acordei ainda estava no hospital e soube da notícia que minha irmã não tinha resistido e havia morrido envenenada pela mandioca brava que o velhinho tinha nos trazido. Esta foi sua última refeição.
Pedro Barros.