Quando Hefesto desce à Terra

Desperto da penumbra noturna, que pairava sobre meu ser, os róseos dedos da aurora já se difundiam no longo céu cinza da cidade.

Levanto de minha cama, com aquele amargo gosto em meus lábios; caminho, lentamente, até o local tão cobiçado. Como se a noite, a passos largos e inevitáveis, dirigisse-se para esse momento absoluto, o primeiro suicídio do dia— o dia foi composto por diversos suicídios, mas sem nenhuma morte.

Sento-me naquele lodo fétido, local onde até os animais mais asquerosos sentiriam pena de mim, reúno todos os equipamentos necessários. Finalmente, aquela morte penetra-me; difundi-se pelo meu corpo na forma de uma densa fumaça com sabor de alcatrão; preenche meu corpo vazio; desce pela garganta; bate nos meus pulmões como as tempestades oriundas do Abala- Terra, logo aquela sensação não mais me pertence, agora, ela se dissolve no ar bem em minha frente.

Novamente, eu estava completamente vazio, surge a necessidade de sair do lodo que me aprisionava. Levanto-me violentamente e surge, de minha rouca garganta, um grito que abala as estruturas do meu próprio eu. Corro para frente do espelho, miro-me e o que vejo? Nada, somente aquela fumaça que outrora tomava meus órgãos, o leitor deve se perguntar, se essa venda esfumaçada me incomodava ou como posso, eu, não ver minha própria figura naquele espelho- aqui reside mais um dos meus suicídios diários.

Responde- lhes, nada me acontecia, nenhum sorriso e minhas lágrimas já não podiam correr pela minha face deformada, pois estavam petrificadas, mesmo se as águas dos olhos corressem não as via, eu está coberto pela negra fumaça.

Não adianta lamentar agora, saio às pressas, estava atrasado para meu labor diário— aprensento- lhes mais um suicídio. Pego aquele ônibus lotado, todos ao meu lado são sombras e um emaranhado de nuvens densas, como havia visto aquele eu no espelho, não os reconheço, não posso os reconhecer, é algo maior que eu, procuro de toda forma enxergar alguém, mas são me devolvidas apenas sombras, meu mundo havia se reduzido a escuridão, tenhas piedade de mim, Hades.

Sigo meu caminho, chego ao meu trabalho, um trabalho que não me pertence e não me gratifica em nada, somente sacia minha fome de comida, produzo coisas, apenas coisas, que nunca poderei frui-las, ao contrário, elas me dilaceram aos poucos.

Meus companheiros não estão ali, vejo, por todos os lados, corpos sujos e moribundos que esperam a hora que o chicote do feitor lhes afligira o último suspiro de animo, para que produzam mais e mais.

Não tenho controle sobre meu corpo, aquela máquina lhe impõe o ritmo e o controla, minha vida se tornou a vida daquela máquina, que se alimenta de meu suor, devora minha alma e me joga naquela escuridão sem fim.

Horas passam, e aquela escuridão só aumenta, tenho vontade destruir aquele uniforme que me apaga, não tenho a posse sobre meu próprio corpo, ele também não me pertence. Assim, chego ao fim de mais um dia de trabalho, volto, naquele mesmo ônibus de sombras, a meu recluso castelo de dor e solidão.

Termino meu dia com aquele mesmo ato que o começara, tomo alguns goles de água ardente, vou deitar-me. E desejo que possa ter sonhos, já que esse é o único momento que minha vida ganha cor.