Croniconto: a vendedora de "geladão"
O que leva, ou melhor, o que trouxe uma senhora de cabelos grisalhos, aparentando suportar mais de seis décadas nos ombros, estando a empurrar um carrinho de feira com três caixas de isopores empilhadas e anunciando a venda de “geladão” aos passageiros de ônibus, que aguardam pacientemente seus coletivos num domingo à tarde no centro da cidade? A questão que é imensa, pois abarca num mesmo drama observado uma diversidade de outros tantos questionamentos, parece sugerir, também, diversas perspectivas para o esboço de uma possível resposta. Ao caminhar por entre os vários pontos de ônibus do terminal na observação do fenômeno, pus-me a refletir sobre os motivos daquela ocorrência. Num primeiro momento pensei: pode ser que ela seja a única pessoa de uma família entupida de crianças que esteja livre naquele período para trazer leite e pão no fim do dia, pois os filhos estão trabalhando atrás de balcões de bares, em cozinhas de restaurantes, nas faxinas de hospitais, nas portarias de grandes edifícios, ou em outras tantas possibilidades de trabalho, logo numa época ruim para a oferta de vagas de emprego. Logo em seguida, esbocei a hipótese de que ela poderia ser a mãe, ou uma avó, de alguém que sofre de uma enfermidade grave e agressiva, e que a iguaria refrescante de baixo custo e de baixo retorno financeiro surgira como uma chance de angariar alguns trocados a mais, na tentativa de acrescer com que os outros parentes conseguem em seus devidos serviços diários, visando o pagamento de um procedimento cirúrgico de alto custo ou do tratamento que exige gastos muito acima do que a família pode pagar. E já num instante posterior, fiquei pensando sobre a possibilidade daquele trabalho ser uma forma de terapia ou uma forma de preencher o tempo e a mente daquela anciã, pressupondo que a mesma poderia estar vivenciando uma depressão, ou mesmo um luto, provocado pela morte do esposo ou de um filho. Enquanto meus pés me direcionavam a caminho de minha solidão costumeira de domingo, após as 14h em meu humilde quitinete, aquela senhora continuava empurrando seu carrinho, quiçá movida por uma motivação triste como acabei de cogitar, quiçá movida por uma outra sensação que ninguém tivesse acesso por se encontrar no fundo de seu íntimo. Nesse último caso, qualquer pensamento de outro observador não passaria de conjetura. Assim, derramando um líquido salgado da pele enrugada e queimada a esturricar no sol quente de um dia de verão, ela avançava firme em busca de alguém sedento por abrandar o fogo de sua goela com o mais doce “geladão”. Em alguns passos a mais, a senhora escapou de minhas vistas, o anúncio da sua voz rouca e cansada silenciou, e a vida continuou juntamente com a dança irrequieta do tempo.