“O PRIMEIRO TOQUE A GENTE NUNCA ESQUECE”

- Será que bati na porta errada? Seria isso aqui algum velório?

Foi a primeira sensação que me ocorreu ao adentrar no ambiente, silencioso e tenso...

Peguei minha senha: 14...

Ufa! Ainda bem que me atrasei um pouco, senão seria o 13...

O ar condicionado zunia para dar conta de aquecer o ambiente que emprestava frieza dos marmanjos, que se aglutinavam na minúscula sala da recepção do consultório médico de um dos proctologistas mais famosos desta urbe.

O ambiente lembrava um velório pela expressão sisuda dos presentes, que simulavam ler as revistas que traziam novidades antigas: “PC Farias finalmente preso”, era a capa da Veja que um dos presentes utilizava para cobrir um pouco da vergonha que teimava em despencar de sua feição constrita.

Hummmm... pela quantidade de pacientes (nunca esse vocábulo me soou tão inadequado) talvez o médico não tenha vindo hoje...

Algum problema de família, a sogra pode estar gripada, ou a mãe da sogra do cachorro dele, sei lá...

Minhas divagações esperançosas se dissiparam com a voz, elegante e firme da assistente do médico:

- Próximo... senha número 12...

O baixinho, sentado de meu lado, levantou-se com agilidade...

Mas voltou a sentar-se...

Imediatamente ao ver o tamanho do médico que se apresentava no vão da porta: certamente deve ter associado a estatura do carrasco com o tamanho de seu dedo indicador...

- Siga-me, por favor!

Mais que um convite, brandia como uma ordem a voz da assistente que aparentava uma naturalidade doentia...

Irresoluto, o baixinho levantou-se novamente, e seguiu seu destino, em passos trôpegos...

- 2,00 metros? Mais ou menos isso, a altura do médico...

Tomara que, pelo menos, não seja insensível...

Que no dia seguinte, não se esqueça de mandar flores...

Ao menos um telefonema...

No mínimo um email, depois de tamanha intimidade...

Meu sorriso é mais de nervosismo do que da inoportuna lembrança dessa piadinha besta...

“Where is the moment when we needed the most

You kick up the leaves and the magic is lost

They tell me your blue skies fade to grey

They tell me your passion's gone away

And I don't need no carryin' on

You stand in the light just to hit the low

You're faking a smile with the coffee to go

You tell me your life's been way off line

You're falling to pieces everytime

And I don't need no carryin' on

Because you had a bad day

You're taking one down

You sing a sad song just to turn it around

You say you don't know

You tell me don't lie

You work with a smile and you go for a ride

You had a bad day

The camera don't lie

You're coming back down and you really don't mind

You had a bad day

You had a bad day”

- Bad day!!!

- Era só o que faltava nesse vale de lágrimas...

A música ambiente escapulia agourenta e até agressiva: como uma propaganda de venda de corda, num velório de um enforcado...

Mentalmente revisei minha agenda diária, semanal, mensal e anual...

Ah! Aquela reunião importante, aliás, importantíssima... a que horas será?

Vou ligar pra minha secretária... o celular...

Cadê o celular...

Telefone do escritório... qual é mesmo o número?

Ainda bem que está na memória, então, digitando... errei de novo... aceitei agora, chamando...

- Boa tarde (respondi, não muito convicto de que fosse boa aquela tarde fria)... por favor, me confirme a que horas será aquela reunião com o Banco X... será às 15 horas?

- Um momento... sim, às 15 horas... de amanhã...

- Só amanhã, tem certeza?

- Um momento... sim, amanhã, quinta-feira, 14 de junho de 2007...

- O quê? Hoje é dia 13?! Pensei, desligando o telefone sem raciocinar...

- Hummm será que não esqueci alguma panela de pressão ligada lá em casa?...

Enquanto eu buscava, no catálogo mental, alguma outra desculpa menos esfarrapada vi o baixinho cruzar a sala em direção à porta de saída, cabisbaixo, silencioso e tristonho...

- Panela de pressão ou seria mais factível um ferro-elétrico esquecido ligado em casa, pedindo minha intervenção inadiável...

- Será que ainda existem ferros-elétricos, ou seria ferros-elétrico, ou ferro-elétricos, pra que mesmo que serve um desses?...

A voz, vigorosa e objetiva da assistente do médico, irrompeu quebrando o silêncio do ambiente:

- Próximo, senha número 13...

O penúltimo impaciente, aparentando experiência com a situação, como um boi de corte cônscio de sua sina, caminhou serenamente para o interior do consultório, mas antes deu uma visualizada na janela da recepção...

De súbito a lembrança...

Ah!, é com minha cardiologista que fisicamente se parece a assistente do médico...

- Será que ela vai testemunhar o ato?

- E na hora de tirar a roupa?

- Será que o nervosismo não me pregará alguma peça?

- O morcego (que sempre de cabeça pra baixo), será que não vai querer se levantar (numa rebeldia similar à dos controladores de vôo de Brasília), no antes, no durante ou no depois?

Como ocorreu na cardiologista, quando tive que protelar o despir das calças, para ficar só de cueca, porque o general (no frio de hoje seria no máximo um soldado raso) resolveu bater continência, sem nenhuma razão plausível...

Tive que revisar a conversa sobre a previsão do tempo, as novidades no mundo da cardiologia (mas com a preocupação de não prolongar em demasia aquele strip-tease), tentando distrair o insubordinado, que toma decisões à minha revelia...

- Excitação num momento desses vai ser vexame em dose dupla...

- Ah! vai receber um castigo severo se Ele me aprontar uma dessas...

- Será que eles têm um balde de gelo nos materiais de primeiros-socorros, para casos de emergência?

Abre-se a porta do consultório e o senhor sai, com um suspeitíssimo ar de satisfação, dá mais uma e última espiadela na janela e caminha em direção à porta de saída...

Deixando-me, ali, sozinho com os advsersários: a recepcionista (carcereira), a assistente (responsável pela leitura do veredicto condenatório) e o carrasco (de dedo em riste).

Intrigado, caminhei até a janela... 28º andar...

Alto demais, que saudades de meu pára-gleider e até do tombo que com ele levei no litoral, no final de semana ...

Queria ser o personagem daquele conto IMPACIÊNcegueira, em que o imitador de passarinhos abre a janela e... sai avoando...

- Não tem saída, constato irresignado...

- E o pior (se é que isso ainda possa ser piorado) é o risco de efeito colateral...

- E se eu gostar?

- Se eu fiicar viciado no procedimento?

- Querer desmarcar a reunião de amanhã para vir aqui repetir o exame?

- Ou noutro médico, para ouvir uma "segunda opinião"...

Xõ! Desgraceira de pensamento....

Melhor voltar àquela matéria interessante: "Saddam Husein foi preso pelas tropas aliadas no Iraque"... dizia a manchete da Veja que me tapava um pedaço do rosto...

Nesse instante de pânico aquela idéia da panela de pressão já se apresentava razoavelmente convincente...

Ih!... Vou ser o último impaciente...

O médico vai estar com pressa pra levar a sogra no médico, ou a mãe da sogra do cachorro dele...

Médico!

Ele aparece, na recepção... pega e examina minha “ficha” e retorna pro internato do consultório...

Da feição dele não me lembro nada, mas aquele dedo indicador!...

Parecia maior que a ficha, que deve medir o quê?

Uns 30 centímetros, 40 ? Será?

Peraí?

Esse médico é um proctologista ou otorrinolaringologista?

Será que é alguma medida, restritiva de custos operacionais, imposta pelos planos de saúde...

Que recomenda o aproveitamento do mesmo exame para alcançar e tocar as amígdalas dos pacientes?

Código de Defesa do Consumidor...

Qual é mesmo o artigo que proíbe venda casada?...

Será que sou consumidor?

Essa seria uma relação de consumo?

- Senhor, por aqui...

A assistente interceptou meus pensamentos evasivos, abrindo a porta do consultório e um sorrisinho denunciante de segundas e terceiras intenções...

- Não senhor... É por aqui, aí é a porta de saída...

O frio aumentou quando deixei no trocador o paletó, a camisa, a calça e os sapatos...

- Depois deite naquela maca, relaxe e...

- Se essa infeliz completar a frase da Marta Superchique... é hoje que vou aprender a imitar passarinho: abro aquela janela e saio voando...

... relaxe e... aguarde que o médico logo vem...

- Ufa... que alívio, mas não tenho pressa não, ele pode demorar o quanto quiser...

Pensei com meus botões, aliás, sem eles, porque já estava peladão... ou pensava que já estava...

- Pode tirar as meias, e a gravata também... alertou-me a assistente...

- De meias, cueca e gravata... que ridículo!

Imaginei de relance, no meio de preocupações mais emergentes... Conjecturava propostas ao indisciplinado: um doce, um cineminha pornô de oitava categoria, sei lá, mentalmente negociava com Ele alguma compensação pela promessa de bom comportamento...

- Senhor, por favor... deite-se aqui...

“Where is the moment when we needed the most

You kick up the leaves and the magic is lost

They tell me your blue skies fade to grey

They tell me your passion's gone away

And I don't need no carryin' on”...

17:30h...

Marcava o despertador fincado na parede do quarto...

Onde estou?

Ih, não estou gostando nenhum um pouco dessa minha sensação de bem-estar...

Será que o efeito colateral...

Era tão remoto o risco...

- Boa tarde... boa tarde... dormiu bem?

Adentrava ao quarto a enfermeira, da clínica de repouso, especializada em recuperação de drogados (como eu, um viciado em nicotina), que oferece sessões de relaxamento muito concorridas...

- Gostou da música?... adoro ela e achei que o Senhor também.... Indagava a enfermeira, que talvez não compreendia o significado da letra da música em inglês e, com certeza, que a mesma música tinha sido o fundo musicial de meus recentes tormentos...

- Ah, sim... também gosto, que música linda... maravilhoooooossssssa, agora... nunca o Daniel Powter cantou tão bem essa música...

- Deixe tocar até o final, por favor... intercedi, quando ela ia desligar o despertador...

Para eu ter certeza de que realmente acordei...

Desse pesadelo... (pensei comigo e com os meus botões intactos...).

Lobo da Madrugada
Enviado por Lobo da Madrugada em 01/07/2007
Reeditado em 20/07/2007
Código do texto: T548129
Copyright © 2007. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.