E ela nem era tão maravilhosa
O ônibus passava pela avenida atlântica lotada sob o sol de quarenta graus.
No início, ainda embriagada com a cidade grande, vi o mar de um azul levemente esverdeado e tentei enquadrar tudo o que eu havia lido, visto e ouvido sobre a suposta cidade maravilhosa.
Corpos morenos disputando um espaço na areia. Guarda-sóis e tecidos coloridos cobrindo quase nada de pele.
Uma cena diferente da paisagem de pastagens, plantações e terra vermelha de onde eu vinha.
Tentei me misturar àquilo tudo, fazer parte do quadro naturalista que fervilhava e chamava para a vida pululante tão bem descrita por Aluísio Azevedo em seu "Cortiço".
Mas eu era bicho estranho. Branca, clara de cabelo e olhos, desafiando o sol e desafiando minhas origens que também trincavam ao sol escaldante dos verões que não respeitavam o outono e às vezes, nem o inverno.
Meu projeto de vida naquela cidade havia começado com um sorteio idiota de destinos. Isso mesmo, nomes de capitais colocados em uma lata qualquer e sorteados por brincadeira. Agora lá estava eu, sentada no plástico marrom do banco desconfortável, tentando desvendar o fascínio daquelas praias que não produziam em mim nada daquilo que havia visto na TV.
Uma leve pitada de decepção começa me incomodar. Um certo desconforto que crescia à medida que eu andava pelas ruas, visitava parques e ficava muda de indignação diante das pichações, palavrões, sujeira, gritos e descaso das autoridades, dos visitantes, da população...
Uma herança genética e passional da colonização, da mistura racial, dos costumes e da conduta que, por um lado gerava o arquétipo nacional com suas características predominantes de boa vida e alegria e por outro, criava o tipo instintivo, irresponsável e irracional.
O festival da carne em seus tantos desdobramentos, em suas tantas cores e tantas reentrâncias que se ofereciam e se abriam em becos, vielas, bares e extrapolavam os quatro dias de folia.
Os cabelos crespos, outros tantos lisos, tingidos ou não a exibir as marcas do sol, as escolhas, as formas escancaradas da suposta preferência da metade macho do país.
E eu, alienígena nesta terra, buscava ingenuamente os ares do século XVIII em suas construções e formas. Ansiava pelos casarios, pelas mansões que marcaram época, pelos costumes e origens, quem sabe até um pouco de história... Mas começava a me sentir completamente idiota.
Nem mesmo quando a personificação do filho de deus me recebeu de braços abertos, pude sentir a grandeza da cidade que gritava em cartões postais, mas em nenhum momento falava comigo.
Talvez pelo meu bairrismo, talvez pela minha fidelidade indiscutível à minha terra ou talvez por simplesmente ter achado aquilo tudo excessivo em seus tons, cores e odores, não houve amor à primeira vista. Nem à segunda e nem depois de todas as vistas fantásticas que realmente enchiam os olhos, mas também davam medo por suas histórias de vidas perdidas e balas jamais encontradas.
Mas eu insisti. Queria ter certeza de que não eram os resquícios interioranos da minha alma que gritavam. Mesmo porque, eu já havia passado um ano na terra da garoa e por aquela cidade, sim, meu coração cantava. Então esta outra, esta tal cheia de maravilhas que deslumbrava gente do outro lado do mundo, deveria sim, ter encantos que nem meus olhos ou minha mente tinham captado. Resisti.
Muito devagar comecei meu processo de transformação e enquanto me apertava nos ônibus e trens lotados, procurava nos jornais algum emprego que me permitisse continuar vivendo aos pés do cristo, a cinco quadras da praia. Uma casa minúscula... Uma outra tragédia de um cômodo só, sobre uma garagem fedorenta, mas que valia cada centavo pela privilegiada localização.
E foi em uma destas idas e vindas que vi a tal cena da praia lotada em plena quarta-feira que nem era de cinzas.
Um dia de sol e pela janela do ônibus, aquele mundo passando.
Barracas com água de coco e milho verde.
Ambulantes carregados de óculos de sol, cangas, chapéus, bronzeador, bonés, protetor solar, camisinhas e qualquer coisa mais que a areia estimulasse e exigisse.
Vendedores com suas caixas de isopor de infinitos tons ensebados de marrom e promessas de bebida gelada e sanduíche natural que de natural só tinha o nome...
Vozes com todos os sotaques, gírias de todos os tipos... E foi então que eu tive a ideia... Mas não uma ideia qualquer. Foi uma iluminação!
Seria vendedora também! Mas não ambulante!
Vendedora em um lugar fixo. Um ponto na praia que se estendia por quilômetros.
Uma mina de ouro naquele fervo faminto de comida, bebida e comodismo!
Meu cérebro analítico rapidamente fez os cálculos... Tantas horas por dia, tantos refrigerantes e sanduíches, tantos cifrões no fim do expediente. E isso ainda na praia. Não uma praia comum, mas "aquela praia" das novelas e filmes de horário nobre.
Teria o dinheiro, ficaria no quartinho bem localizado e ainda mudaria a cor branca fantasmagórica da pele por algum tom de marrom em promessa de bronzeado.
Bingo! A solução perfeita.
E aí, munida mais de empolgação que de juízo, parti em busca das compras:
- quatro caibros de dois metros e meio (sendo meio metro para enterrar na areia);
- três metros de lona colorida para criar a barraca mais chamativa da praia;
- duas caixas de isopor para gelar a bebida e é claro, a própria bebida.
Tudo isso, saindo da Uruguaiana, rumo a Botafogo. Perdi as contas dos palavrões que ouvi no metrô, no ônibus, nas calçadas...
Mas no domingo, antes que o sol desse o ar da graça eu já estava na praia.
Orgulhosa da minha ideia, já imaginava o dinheiro honesto no final do dia e a certeza de que realmente havia algo maravilhoso naquele lugar.
Cinco minutos depois uma musiquinha anunciou o caminhão que vendia gelo. Encomendei duas barras para gelar bem minha mercadoria. E enquanto o caminhão anotava os pedidos dos bares longo da avenida comecei a cavar os buracos para fincar a estrutura da minha barraca.
Pessoas chegavam com suas cadeiras caras, relógios de marca e babás uniformizadas. Bairro bom, clientela melhor ainda.
Fiquei parada, olhando aquele povo e pensando que na minha cidade até poderia ser considerada um deles, mas ali... Era só uma vendedora, uma Maria ninguém com cara de gringa e um plano para provar sabe-se lá para quem que podia ser independente.
Enquanto eu olhava as pessoas que, por algum motivo me olhavam também, tudo mudou.
Não tive tempo para saber de onde vinha o ataque. Uma criatura alta, com milhões de dentes afiados em uma bocarra escancarada, gritava coisas incompreensíveis enquanto chutava minhas coisas.
Negro de fazer brilho... De raiva e de pele. Berrava a plenos pulmões palavras, que, ditas entre amigos não têm peso, mas em público e ditas com tanto ódio assumem a força do preconceito e da discriminação: "branquela, azeda, galega, polaca, aguada..."
A raiva dele crescia na mesma proporção que me xingava, e aos adjetivos sobre minha pele, adicionou outros termos menos racistas, mas nem de longe menos agressivos: "dos infernos, maldita, nojenta, vagabunda..." E assim sucessivamente até que eu me encolhi de tal forma que ele passou dos gritos à palavras de ordem: "aquele ponto era dele, morava na favela há anos, queria me ver longe dali!"
Ainda me lembro dos rostos incrédulos à minha volta. Alguns de piedade, outros jocosos e outros ainda de pura satisfação.
Tentei brevemente entender como "aquele ponto" seria dele, justamente naquele lugar em mais de dez quilômetros de praia.
Não argumentei. Saí da minha posição de defesa, expus todos os tons de branco da minha pele, agora com pontos vermelhos de raiva, indignação e vergonha e olhei diretamente nos olhos dele. Com o ar mais altivo que pude, juntei os caibros, a lona e as caixas de isopor.
O gelo ficou derretendo na areia, mas esperei o caminhão voltar e paguei minha conta como deveria ser.
Quando saí, arrastando minhas coisas, ainda ouvi o vendedor da barraca de milho tentar me explicar que o povo daquele morro era daquele jeito mesmo.
Não quis ouvir.
Nunca vendi uma latinha naquela praia e em nenhuma outra. Nunca mais voltei naquele lugar. Minha carreira de vendedora na praia morreu "na praia" e em menos de meia hora.
As caixas de isopor serviram de embalagem posteriormente. Os caibros foram doados para um catador de papel. A lona foi usada em um toldo antigo na casa da minha mãe.
Fiquei na cidade por quase um ano depois daquela manhã terrível, mas o comportamento daquele cidadão, não diminuiu minha teimosia.
Visitei outras praias famosas, tentei ver as belezas estampadas nas capas de revista, admirar o tom pitoresco das gírias, o balanço malandro do andar no fim do dia e o som característico da música que atrai multidões. Tudo em vão. Não dá para forçar paixão.
Fico imaginando se aquele cara não tivesse surgido para literalmente chutar o "pau da minha barraca". Talvez eu tivesse vendido centenas de latinhas, talvez ganhado algum direito e ao invés de ficar apenas um ano naquele lugar, teria ficado, dois, três, cinco e minha vida teria um rumo totalmente diferente.
Há coisas estranhas na vida... Histórias que de tão absurdas parecem ficção. No fim, eu tenho mesmo é que agradecer o tal sujeito por ter feito o que fez.
Nunca fui fã de praia agitada. Não gosto de disputar lugar na areia. Não vejo sentido em ficar esparramada no sol. Não curto novela, portanto, nem sei quais são as "celebridades" que frequentam lugares como aquele.
Tempos depois, busquei outro lugar. Novamente o tal sorteio da lata, mas desta vez as opções eram só duas. Venceu a cidade da infância. Amor à vigésima vista.
Hoje sou completamente apaixonada pela cidade do dia das quatro estações.
Desta história, tirei alguns ensinamentos...
- Primeiro: há muita gente vendendo coisas na praia;
- Segundo: determinadas praias possuem demarcações que só algumas pessoas conseguem ver;
- Terceiro: até quando "detonam" você podem estar fazendo um grande favor;
E por último, mas não menos importante, é que foi muito ruim sentir a discriminação por causa da cor da minha pele.
Ficaram as lições.