Por que nos (des)apaixonamos tanto?
Todos temos nossa primeira paixão. E aí vem a segunda. Depois, quem sabe, a terceira. E a quarta, a quinta, a sexta, e por aí afora, numa sequência que pode ser bem, mas bem extensa, mesmo.
Nossos avós talvez se choquem com isso, com essa molecada do tempo de hoje que não tem juízo mas já tem uma coleção razoável de relacionamentos.
Mas o que espanta não é somente a aparente facilidade com que as pessoas se apaixonam; em outras gerações, causa estranhamento também a facilidade com que as pessoas desapaixonam nos dias de hoje.
- Ué, mas teu namoradinho não era o Bruno?
- Ih, vó, o Bruno foi mês passado.
E nossos avós não estão errados em se espantar. Algo aconteceu e tornou bem mais fácil o (des)apaixonar.
Afinal, por que nos (des)apaixonamos tanto?
Vamos tentar uma explicação sociológica usando da análise de Zygmunt Bauman sobre dos dias atuais.
[Os tempos líquidos]
Sociólogo polonês ainda em atividade, Bauman (1925-) é muito famoso e popular pelo uso do adjetivo líquido para explicar a atualidade.
Esse adjetivo tenta sintetizar uma série de rupturas e continuidades que ocorrem em nossa sociedade desde o final da Segunda Guerra Mundial, algo que abrange desde o modo com que pensamos até o modo com que sentimos (que, afinal, não são coisas tão separadas assim).
Diferente do passado, quando as coisas ainda eram sólidas e duradouras, quando as tradições ainda davam sentido, coerência e certa segurança às nossas vidas, nas últimas décadas tudo tende a ser líquido. Ou seja, as coisas se tornaram frágeis, escorregadias, indeterminadas, sem forma fixa ou previsível, e por isso incomodamente inseguras.
A dualidade que Bauman lança é a de uma vida social passada organizada em regras sólidas versus uma vida social atual organizada em regras líquidas.
E tudo que é líquido é bem dramático. Coloque algo sólido sobre a mesa e ele permanece parado; derrame algo líquido e será uma sujeira enorme. Conter, manusear, controlar, segurar, dar forma... tudo isso é perturbadoramente difícil de fazer com as coisas líquidas.
E, para Bauman, nós somos pessoas envolvidas num mundo líquido.
[Consumismo, a nova religião]
Uma importante chave para entender os tempos líquidos de Bauman é o consumismo.
O consumo, é claro, sempre existiu na história humana, mas consumismo é algo bem diferente.
Consumismo é quando o ato de consumir se transforma no centro da vida social, algo como a força propulsora do nosso modo de vida, e isso definitivamente não existiu desde sempre na história humana.
Assim, adquirimos coisas não mais pela necessidade que satisfazem, mas sim porque sentimos uma necessidade absurda de adquirir coisas, mesmo que dispensáveis à nossa sobrevivência.
A lógica que guia o consumismo é a dos desejos que nunca cessam, e a consequência disso é nos atirar numa perpétua substituição das coisas que prometem satisfazer nossos desejos - que, repito, muitas vezes nada tem a ver com nossa sobrevivência imediata.
E sim, tudo isto é um buraco sem fundo, um ciclo infinito e insaciável, o cachorro que corre atrás do próprio rabo, mas que o mercado capitalista sabe explorar muito bem ao lançar periodicamente novos modelos de smartphones.
O problema para o qual Bauman alerta, porém, é que o consumismo virou quase uma religião - e tem até seus templos, como shopping centers e afins. E assim começamos a pensar, sentir e agir como um consumidor em todas as esferas de nossa vida; os tais bons costumes, as regras, a moral, ou simplesmente a tradição, nada disso mais importa, só o que importa são os desejos e a possibilidade de satisfazê-los (mesmo que a satisfação dure pouco tempo e logo seja substituída pela busca de outra).
E isso pode fazer uma bagunça enorme, como de fato faz.
Quando elegemos como critério máximo nossos desejos e nossa vontade de obter prazer, e portanto adotamos uma postura de consumidores para tudo, dissolvemos as antigas certezas que regiam o mundo, mas eram tais certezas que nos conferiam segurança. Sabíamos o que fazer, como fazer, ou ao menos sabíamos o que podíamos esperar que o outro faria e como faria. Em tempos de consumismo, isso tudo se perde e é substituído pela liberdade de cada um agir como quer na busca pela satisfação dos seus desejos.
Este cenário reforça os tempos líquidos de Bauman. O consumismo desvairado torna as coisas ainda mais incertas, indeterminadas, imprevisíveis, difíceis de se conter, pegar ou manusear. As coisas tornam-se um fluxo, não estado fixo.
E, naturalmente, isso alcança também os relacionamentos humanos. Envoltos pela lógica consumista, passam a dançar conforme a música dos tempos líquidos.
E aí haja (des)apaixonar-se!
[Consumidores ou apaixonados?]
Somos consumidores espertos. Não aceitamos ficar com produtos defeituosos, não aceitamos pagar caro pelo que em outro lugar é mais barato, e não aceitamos ficar com um modelo velho quando já saiu um modelo mais novo e melhor no mercado. Somos assim com computadores, carros, smartphones, roupas, calçados - e também pessoas.
O mesmo critério avaliativo que usamos na troca de um produto, nós usamos também para as pessoas com quem nos relacionamos, inclusive afetivamente.
E assim, a comparação que Bauman faz, mas que em sua visão é quase literal, é a de pessoas como produtos para consumo.
Tal como num shopping center, onde somos fisgados instantaneamente por algo exposto na vitrine e que nos promete algum tipo de felicidade, somos fisgados instantaneamente por uma pessoa que, quem sabe, possa satisfazer nossa vontade de prazer.
E ficaremos com essa pessoa conforme a satisfação durar. Quando a satisfação começar a fraquejar, ou a pessoa começar a dar problemas (esses defeitos que só aparecem depois que compramos algo!), bem, há tantas outras pessoas, tantas outras possibilidades, então por que diabos eu deveria insistir nesse produto já ultrapassado e defeituoso?
O que torna esse raciocínio legítimo ao invés de frio e calculista é justamente a lógica consumista que permeia toda a nossa vida.
Quando as escolhas não são amarradas por tradições ou normas, e sim pela vontade individual dos envolvidos, pessoas podem ser avaliadas e descartadas sem muito drama - bem, a menos que você seja o avaliado e descartado, daí dá-lhe música de dor de cotovelo.
As paixões que se acumulam em nossas vidas, que podem ir de algumas até dezenas, parecem atender a esse modus operandi consumista. Não buscamos compromisso ou durabilidade; buscamos prazer, satisfação, felicidade, e sentimos muitas vezes, na verdade, que para conseguir tudo isso devemos mais é evitar compromissos e durabilidades.
Como se diz por aí entre os enamorados de longa data, o melhor do namoro são os três ou quatro primeiros meses, depois é só dor de cabeça.
Ora, por que não viver então numa eterna sucessão de três ou quatro primeiros meses, mesmo que o preço seja a troca das pessoas?
[Conectar e desconectar]
Nesse sentido, Bauman usa a ideia de estar conectado para se referir aos relacionamentos típicos desses tempos líquidos.
Uma conexão é atrativa porque é possível fazer várias, mesmo que não muito profundas; amizades coloridas, rolos, ficantes, peguetes, podemos nos conectar com muitas pessoas, e são conexões flexíveis, que não precisam de muito gasto, investimento, dedicação ou mesmo proximidade - um viva para o Facebook.
Mas gostamos do estar conectado a outra pessoa principalmente porque é extremamente fácil desconectar. Conexões são superficiais e facilmente rompidas, e aí está seu atrativo. Em tempos de incerteza, onde não sabemos o que esperar das outras pessoas, mas que também buscamos continuamente uma promessa de satisfação que pode surgir a qualquer instante, como na fila do banco ou na festa de aniversário do seu primo, a possibilidade de estar livre, leve, solto e solteiro assim que desejarmos isso, é crucial.
O pavor com que imaginamos aqueles tempos loucos em que as pessoas se casavam com 20 anos, e com pessoas que talvez nunca tinham visto antes, ou então que eram seu primeiro e único amor (!), é só um reflexo de um tempo em que desconectar das pessoas está na ordem do dia.
Nos (des)apaixonamos tanto, e tão fácil, porque o consumismo toca nossas vidas e enche de incerteza e expectativas todas as nossas escolhas. Neste cenário, compromissos a longo prazo, ou decisões em definitivo, são difíceis.
Como saber se minha escolha em definitivo coincide com a escolha em definitivo da outra pessoa? Como saber se nunca vou me arrepender da minha escolhe em definitivo, ainda mais quando há tantas opções?
Temos que provar, experimentar, estar abertos à novidade que ainda está por vir mas que nem a imaginamos, ter sempre um botão de emergência para apertar caso se desconfie que a outra pessoa não está tão envolvida quanto desejamos e preservar assim nossa auto-estima. O caminho da desconexão tem que estar sempre próximo e liberado.
Afinal, quem é que compraria um celular hoje assinando um termo de que nunca, jamais o trocaria, que permanecerá com ele até que a morte os separe?
Celulares à parte, para as paixões o drama da questão se repete. Em tempos incertos e consumistas, é mais fácil se apaixonar e depois, quando bem calhar, desapaixonar.
(Para mais explicações sociológicas, visite SociologiaExplica.com)