OS MATADORES DE LAGARTIXA
Chega a primavera. A caprichosa sibipiruna gradativamente derruba as flores, garantindo um mês de constantes limpezas de calçada.
Com o tempo quente, surgem insetos de todas as partes. Formas aladas de cupim saem dos móveis antigos atraídos pela luz, revoando nervosamente em torno dela. E como a vida aprecia as cadeias alimentares, logo aparecem os seus predadores, as lagartixas.
Pouco sei sobre essas noturnas formas rastejantes. Sempre achei que de tão translúcidas, deixavam à mostra o conteúdo das barrigas, e isso era uma indignidade. De ouvir falar, sabia que abandonavam o rabo em caso de grande aperto, que ele permanecia fantasmagoricamente remexendo-se longe de seu dono, e se acaso o mesmo caísse sobre o dedo, provocaria paralisia instantânea. O mesmo ocorrendo com a sua mordida venenosa.
Um ser bem asqueroso, enfim. Quando colocado em poema, nos versos de Álvares de Azevedo, é para rebaixar a figura do bardo ao extremo, distanciando-o da amada sonsa e fazendo com que ela se sentisse poderosa: Tu és o sol, eu sou a lagartixa. Não lhe ocorreu nenhum outro animal que se prestasse tão bem a esse papel.
Até eu me deparar em criança com o seu esqueleto, acreditava que fosse um bicho desossado. Nunca tinha parado para pensar em qual divisão do mundo animal ela se enquadraria. Sua semelhança com os lagartos não é tão evidente assim. Muito menores do que eles, não possuem aquela pele dura e escura que os caracteriza, seus hábitos são noturnos e estão sempre próximas dos homens.
Devem ser parentes distantes dos dinossauros. Durante milhões de anos viveram escondidas em frestas, ridicularmente pequenas, aguardando que aqueles macacos evoluíssem, construindo suas edificações, onde elas afinal saboreariam os bichinhos de box de banheiro.
Uma vez, no banco de um parque, sentou-se ao meu lado um maluco. Forte, andava lentamente e tinha o olhar vidrado. Começou a conversar comigo. Sua infelicidade resumia-se a uma única preocupação: confidenciou-me que matara uma lagartixa há certo tempo e desejava saber se tal crime o condenaria ao inferno. Eu o acalmava, dizia que não, que lagartixa era um bicho bobo, que tinha coisa pior acontecendo pelo mundo. Mas não sei se consegui removê-lo de suas angústias.
Acordo nesta madrugada com uma lagartixa morta aos meus pés. Apontando para ela, meu cachorro orgulhoso. Vivemos numa época em que os cachorros têm livre trânsito pela casa e em que seus donos não têm coragem de matar uma lagartixa. Tentei tirá-la dali com uma pá, mas não consegui. O cachorro postou-se sobre sua pobre vítima com unhas e dentes, disposto a dar a vida por aquele troféu. Fui dormir no sofá, com nojo e sem conseguir resolver o impasse.
Não sei em qual momento histórico fomos perdendo a virilidade. Meu avô era truculento. Talvez falte isso aos nossos dias. Ele teria dito verdades necessárias ao maluco da praça. Da mesma forma que matava onça com espingarda, cobra com pedaço de pau e destroncava pescoço de frango com a mão, não teria pruridos em matar lagartixa à chinelada. Com o mesmo chinelo, espantaria o cachorro de cima do colchão e o faria dormir no quintal.