DESTRUINDO UMA INFÂNCIA
E não é que o corretor ortográfico quer acabar com a minha infância?
Amarrar os tênis por conta própria foi a minha primeira grande conquista (ou talvez a segunda, acho que nessa época já não gritava pela minha mãe no banheiro), um fato tão remoto mas do qual me lembro com absoluta clareza do lugar, da ocasião e do sentimento de potência que senti.
Ainda era um laço canhestro, mas já era um primeiro passo ou, a rigor, um conhecimento que me ajudaria a dar os primeiros passos.
Depois, com os inevitáveis kichutes, aprimorei-me, e em pouco tempo já tinha dominado suas três formas de amarração: a convencional, a que dava voltas em torno do pé e a mais abominável e sofisticada, a que subia pelas canelas.
Consultando o dicionário, minha gloriosa primeira edição do Houaiss, descubro que eu dava nós em uma palavra inexistente, embora tão cara para mim. Ele simplemente não consigna a palavra amarril.
Há "amarrilho", que veio junto com as caravelas, amarrado aos mastros. mas foi só chegar à praia, naquele calor de índio tirar tanga, que ela também já se despiu da coda silábica final. Na mesma praia nudista, através do mesmo processo de iotização, vieram depois o veio, teiado, cuié, trabaiá etc etc.
Ou será que deliro, e essa variação que eu julgava universal restringe-se ao uso da minha família, ou do timinho do bairro, como as "faíscas de pão" de uma amiga?
Eu, pelo menos, não vou nunca amarrar meu amarrilhos, mutio menos meus cadarços. Vou sempre dar nós nos meus amarrís.