Silêncio de sons
É assim. Você nasce, vive e ensina a si mesmo a ser o que não é. Sentada naquelas escadas intermináveis e vazias, foi o único pensamento que me ocorreu, aleatoriamente. Em cinco minutos eu já era íntima de cada vão de argamassa das paredes, pequenas placas de sinalização nos corredores, rachaduras nos brancos tijolos. Em cinco milênios eu não era íntima de mim.
Só quem se esconde daquilo que tem ciência de estar se escondendo, sabe o quanto dispara o coração a cada pequeno sinal de que pode ser descoberto. Eu não tinha crimes ou infâmias, nem mesmo qualquer vergonha a esconder. Mas eu tinha meus próprios labirintos, eu tinha a presença das pessoas que eu queria recusar. Nas plataformas de metrô, um homem mata outro e todos percebem rapidamente. Vira o escândalo nacional. O homem que matou outro homem. Sozinha nas escadarias, eu mato a mim, fingindo não perceber a própria morte. E nada pode ser mais letal do que usar os traiçoeiros labirintos internos para se refugiar. O que acontece é que sinto a necessidade de fugir do meu próprio refúgio.
Sobre nossa função no mundo... Somos verdadeiros mestres, aptos por toda a vida a ensinar a nós mesmos. Ensinar o quê? A arte, unicamente. A arte de sermos outros em nós. Mais soltos, mais contidos, mais inseguros e mais felizes no sonho da atuação ser contrariamente a realidade. Somos mestres em confundir ambos. Também em fingir que estamos à vontade com o barulho das avenidas. Manhã, tarde, noite. Noite , manhã. O ciclo interminável que nos aborrece. Em face, dormimos acordados e o eu primário de nós mesmos dorme acompanhado pelo som do vento, que uiva através das paredes esquecidas das escadarias. Não me engano. Sei que não é o lá fora que me atrai. Sei que é somente o vento assustador, todavia aconchegante. Sei que pouco me importa todo o restante, mas os rastros mortos nas coisas vivas vai refletindo o meu desejo de dormir calmamente para depois acordar mais disposta, aceitando tudo como é. O vento, morto... As escadas vazias. Me completam. Eu não posso aceitar tudo como é. Também não é matéria que me cabe, assim como buscar modificar tudo como já está. Estou aqui, com todo o necessário para minha sobrevivência. Mas me desintegro comigo assim, como o vento que chicoteia para lembrar que existe. A prova de nossas existências são nossos próprios sons. Eu falo baixinho, pois as vezes é necessário educação comigo mesma. Noutras eu grito angustiosamente, pois é preciso autoridade para com minha rebeldia. Mas quando durmo e vivo os dias, quando entendo não ser invisível e quando acostumada a ser o falso papel que me ensinei, tudo o que resta é um grito calado e sufocado dentro de minha própria voz. Eu não me escuto mais.