Galos e quintais
Galos e quintais
Trabalhar. Rotinas do dia a dia. Rituais desde o despertar pela manhã; a higiene pessoal, trocar a roupa da noite, uma olhada no espelho, examinar o semblante, sentir o humor pessoal, a primeira alimentação, avaliar os desafios do dia, enfrentar as obrigações. Como nos sairemos? Que andamento terão nossos problemas e obrigações? Bem pensando, um único dia perfaz uma miniodisseia; cenas se sucedem; algumas previsíveis, outras, puro acaso.
Dez, onze horas de trabalho; tensões, aborrecimentos, pequenos sucessos, sensação do dever cumprido... e a volta para casa. Uma surpresa incomum, um fato surpreendente pode estar a aguardar-nos.
Vindo do quintal da vizinha, um estridente cântico de galo devassa os ouvidos. Surpresa agradável, aliás, agradabilíssima. Foi o que se deu. Ouvido mais atento, logo me dei conta de que um criatório de galinhas e pintinhos fora recentemente instalado pala vizinha; reinando entre eles está o galo. Examino-o da minha janela a cavaleiro. Minha postura curiosa é quase um voyeurismo; temo que a dona da casa se incomode com a minha curiosidade (eu, que quase nunca fico àquela janela), que ela se desgoste com a minha figura devassando aquela parte da casa onde a tradição nordestina fez constar alguns arbustos, um quartinho, grama e capim ralo – tudo numa disposição intimista a evocar famílias antigas, muitas vindas dos sertões e dali trazendo parte dos costumes das fazendas, costumes tão bons quanto humanizantes.
Voltemos ao nosso galo. Vi-o bem, na manhã seguinte. Era um sujeito colorido, de pernas grossas, esporão afiado, penas limpas, a gola e a crista vermelhíssimas, um papo estufado, um bico adunco e, a ressaltar sua masculinidade arrogante, um andar decidido e marcial. Atravessou em linha reta e pisando forte uma parte do quintal; desfilou, com garbo e convencimento, seu orgulho de rei do terreiro. Coroando aquele rápido passeio de reconhecimento e de exibição, voltou-se e, estufando ao máximo o seu peito forte, disparou o seu canto mais do que audível e a dizer para as submissas esposas-galinhas que ali estava seu senhor e amante, e que seu viço bem se bastava para todas elas! E, numa olhada provocativa cá para o meu lado, disse-me, com outro canto, que ele podia ser poligâmico e ousado, sim! e que a mim no máximo me competia, ao crepúsculo, enamorar-me da Lua, recurso poético, consolo resignado para um humano não menos que invejoso.
Galinho garboso, trouxeste a lembrança mais que enternecedora da minha mãe Elita. Afeita a esse criatório, ela se comprazia completamente com tais afazeres nos seus quintais no Sítio Brejinho e na Fazenda Papagaio. Certamente, foi acompanhando sua afeição que Belchior cantou os galos e quintais.
Fortaleza, Parquelândia, outubro de 2009
JC de Guaramiranga