VADE RETRO!
Trabalhar no centro da cidade tem os seus inconvenientes. Demora-se a vencer o trânsito e para quem, como eu, não se sujeita aos estacionamentos privados, resta a longa jornada (preciso, a propósito, retomar minhas antigas caminhadas) após deixar o carro fora da zona azul, que cada vez mais amplia seus domínios. Chego ao serviço suado, com a camisa colada às costas. Quem sabe se essa exclusiva atividade física no meu dia-a-dia sedentário, a ida e vinda entre o carro e a empresa, já não me tenha salvado de algum enfarte?
Outro inconveniente é o massivo assédio de quem quer que eu troque o chip, tire foto para RG, desnude meu destino via palma da mão. Para evitar tudo isso ajuda ter dois metros e a capacidade de acelerar por curtas distâncias. Mas há certos estorvos aos quais não se pode fugir, por mais que se ande depressa.
Uma vez por semana, os verdadeiros ocupantes do coreto da praça, os mendigos e maltrapilhos, são removidos do seu espaço para ceder lugar a alguns senhores e senhoras, com seus ternos e vestidos. Junto deles, um carro de som possante prenuncia o fim da paz e do silêncio. Em pouco tempo, uma cacofonia de cânticos, de louvores e aclamações, toma conta da praça, invadindo cabeças incautas.
Acaso essas pessoas não sabem que o espaço público é neutro religiosamente? Que as muçulmanas não podem entrar de véu nas escolas francesas, por respeito à laicidade? E que por aqui já retiramos os crucifixos das repartições públicas?
Os verbetes sagrado e templo apontam para a ideia de um lugar vedado, protegido de profanações, destinado ao culto religioso. São nesses lugares que os crentes de alguma fé deveriam reunir-se para a sua comunhão. O espaço público deve ser neutro. A municipalidade não o deveria liberar para exortações evangélicas, sacrifícios de bode ou qualquer outra manifestação religiosa. Nem apreciaria ver nas paredes dos serviços públicos crucifixos, patuás, imagens de ganesha, ou coisa que o valha.
Retornando às minhas caminhadas, ao menos neste texto, costumava quase toda noite andar com um amigo na área de lazer. Eu sempre achei essa atividade esportiva de baixo impacto uma nulidade atlética, mas ao menos acalmava algumas cobranças da consciência. Certa noite, suspendemos nosso exercício para assistir a uma peça de teatro que se encenaria ali, ao ar livre. Era um grupo de teatro de uma igreja protestante, que contara com o apoio de um então vereador para a cessão do espaço público e para os ensaios, e da mãe do protagonista que arranjou com um verdureiro as duas caixas de madeira, únicos objetos cênicos.
Após uma hora, eu estava estarrecido. O que se apresentara a minha frente era de um mal gosto absurdo, sem qualquer conteúdo artístico, uma mera peça propagandística religiosa. Se fosse apenas isso, vá lá, era só de se lamentar o tempo perdido. Mas ao fim da peça, aquele que fazia o papel de pastor cura os ratos do submundo com a palavra de Deus, e livra um personagem do pecado do homossexualismo.
Agora, como fica o cidadão homossexual, que paga corretamente os impostos que sustentam a manutenção das áreas de lazer e dos salários dos políticos locais? Como um destes autoriza, e certamente mais do que isso, promove tal acontecimento?
Senti-me como um indígena dos tempos do descobrimento, assistindo teatro jesuíta de catequização. Mas antigamente, ao menos, havia beleza poética ao se usar a anatomia vegetal da Passiflora para se explicar os passos do Senhor.