"Crônicas de St. Yória - Télamon"
Trevas...
Ele andava sem rumo pela densa escuridão, ventos gélidos açoitavam-lhe como chicote cortante. Sua capa, na qual se enrolava, era insuficiente contra aquele frio extremado.
Ao longe, vozes masculinas a gargalhar, a zoar com alguma coisa.
-Eu conheço essas vozes...
Como projeções numa tela de cinema, surgiram no céu negro imagens de um bando de homens maltrapilhos e mal encarados a beber garrafas e garrafas de bebidas alcoólicas, rodeados de peças de ouro e um refém de boca amarrada. Eles pareciam comemorar uma investida. De repente, a porta é arrombada e entram cavaleiros armados com longas espadas, flagrando a algazarra, prendendo um por um, até que mais homens mal encarados aparecem e uma verdadeira confusão sanguinolenta se instala...
Trevas...
A escuridão então é tomada por um incêndio gigante e violento, uma casa ao fundo, bem visível, o frio é substituído pelo calor insuportável.
-Hey! - ele tenta proteger os olhos com o antebraço, diante daquela luminosidade.
A carranca gigante de um velho surge sobre a casa em chamas, a esbravejar com uma criança. Ele desapare-ce, consumido pelo fogo, urrando por socorro... O meni-no foge escuridão adentro, alternando entre risos e choro.
Trevas... Frio... Vazio...
Três figuras vestidas com pesadas armaduras prateadas como a lua... A mulher brada:
- Essa é a sua sentença!
Um homem passa pelo pórtico de mármore branco sobre o monte rochoso e desaparece.
Trevas... Fogo... Explosões... juízes... Pórtico... O velho cheio de cólera a arder, a pele desmanchando pelas chamas... incêndio por todos os lados...
-Chega!
O homem acorda e cai do galho onde dormia, se es-tatelando no chão. Sorte dele que a grama era macia.
- Foi só um pesadelo... – disse, transpirando, constatando ainda estar naquele bosque onde buscara refúgio. Mais calmo, voltou a cochilar, o sol ainda estava alto.
...
O pequeno garoto e sua cachorrinha de pelos espetados tanto caminharam que conseguiram alcançar os limites da grande, moderna e agitada cidade-estado de Gavinus. Extensas planícies a cercavam e outras locali-dades apareciam apenas a milhares de quilômetros.
Onze e Cindy pararam diante daquela dourada paisagem, verdejantes campos pontilhados por inúmeros bosques e rochas que brotavam do chão tornavam aquela visão deslumbrante. Um imenso sentimento de liberdade se apossou dos dois, que há muito viviam trancafiados na cidade cinzenta e maléfica. Seus olhos brilhavam e infinitas possibilidades surgiam á mente. O menino estava ofegante, não pela longa caminhada, e sim por causa daquele outro mundo que se apresentava, novo e resplandecente. Para ele era a chave de uma nova vida, tamanho o entusiasmo.
- Cindy, isso é incrível! Como nunca viemos aqui antes??? – ele sorria, a imaginação borbulhava. A cachorrinha latia alegre em resposta, como se entendesse perfeitamente. E entendia.
- O ar é fresco, puro!- exageradamente encheu os pulmões de ar, enquanto uma brisa suave soprava-lhe o rosto.
De repente, Cindy o percebeu a metros á sua frente, correndo de braços abertos e gritando feliz. Latindo logo o seguiu, acionando suas perninhas curtas antes que o perdesse de vista.
Uma única estrada de chão batido cortava as planí-cies que pareciam não ter fim. E realmente, tão cedo não viria qualquer comunidade humana perto. Onze e sua companheira praticamente voavam pelo caminho, expe-rimentando uma liberdade inédita para ambos. O infinito e limpo céu azul acima, escurecendo aos poucos na medida em que o sol deitava a oeste, fortalecia aquele sentimento.
E eles correram rápido, mais rápido e mais rápido, e só pararam quando suas pernas amoleceram de exaustão. Então, se lançaram bruscamente no gramado macio ao lado da estrada e contemplaram todo aquele espaço em volta.
- Puf... puf... Uau! Cansei! Nunca corri tanto antes!
Cindy tinha quase um palmo de língua para fora.
-Nossa, olha como Gavinus está distante. Só dá pra enxergar o topo dos prédios. Até a estrela no entardecer já está aparecendo. Em breve irá anoitecer...
Cindy começou a gemer, parecendo apontar para a direção da cidade.
-Quer voltar? Está escurecendo, né...
Porém a atenção dele dirigia-se ao lado oposto, misterioso e inabitado, onde montes se erguiam não muito distante.
-Ai, Ci... Eu não quero voltar, não. Prefiro passar a noite dentro de uma caverna a voltar para aquela cidade que só nos fez mal.
A cachorrinha só escutava, com olhar incrédulo.
-Não estamos sozinhos. Temos um ao outro. Sem-pre nos apoiamos, não é? A dona Leonora nos acolheu, sim, mas era muito severa conosco. Lembra das tantas vezes que eu queria dividir com você a comida e ela não deixava de jeito nenhum? E aquelas pessoas, que nos enxotavam dos lugares, nos chamando de vagabundos?
Cindy baixou cabeça e as orelhinhas, triste, e encos-tou no chão. Realmente as memórias eram pouquíssimas saudosas. Ela mesma levou vários chutes e pontapés pelo simples fato de existir.
-Viu, não há nada para nós em Gavinus. E, para fa-lar a verdade, a dona Leonora irá ficar bem feliz em ter menos bocas para alimentar. Deixemos ela com seus cinco filhos...
-Bem, precisamos encontrar um esconderijo. Talvez naquele bosque ali haja um interessante.
...
Uma brisa fria tirou Télamon de seu cochilo e ao se espreguiçar desequilibrou-se do galho e caiu bruscamente no chão – de novo.
-Droga! Esqueci desse detalhe... Brrr... Está ficando frio. Preciso chegar logo em Gavinus e tentar encontrar algum restaurante aberto. Estou louco de fome. – disse, ouvindo o ronco feroz vindo de seu estômago.
Levantou-se e bateu na roupa para tirar a grama e a terra. Preso na cintura, sob a grossa e longa capa de cou-ro, havia um saquinho cheio de moedas, fruto de seus últimos trabalhos independentes.
-Ainda tenho para umas quatro refeições, isso que não tiverem aumentado os preços nos últimos dias. Tudo naquela cidade é sempre caro demais.
Telamon rumou na direção da grande cidade de Gavinus, mas algo o intrigou durante a caminhada. Dum bosque bem fechado, não muito distante, ouviu gritos de socorro e mais algum ruído. Ele fechou o cenho e partiu seguindo o barulho. Um denso matagal atrás do outro além da estrada de chão batido, confundia a localização.
Então, avistou próximo a uma entrada para um dos bosques, uma carruagem negra, cujos cavalos robustos pastavam tranquilamente. Os gritos estavam cada vez mais altos, e já se ouvia resmungos severos, como “Fique quieto!”, “Pare de se mexer que não vai doer nada!”, “Seja homem, seu moleque!”.
-O que está havendo???
-Me solta! Me solta! “Socooorrooo”! Socooorroooo!!! – gritava uma voz aguda e desesperada.
Télamon entranhou-se no matagal, repleto de cipós e espinhos até que finalmente alcançou a clareira. Nela, um homem segurava firme Onze, enquanto Cindy jazia imóvel num canto, com uma funda ferida na lateral – havia levado uma chicotada.
- Solte-o agoraaa!!!
Télamon imediatamente retirou da cintura uma a-daga prateada incrustada de cristais vermelhos e arre-messou contra a figura cuja identidade era oculta por um capuz cinzento. O arremesso foi certeiro e fez o ser soltar um urro. A adaga fincada em suas costas ardia como um fogaréu terrível e seu corpo parecia incendiar. Enraiveci-do lançou longe o garoto e virou-se para Télamon e voci-ferou, com voz rouca:
- Pretensioso, não sabe com quem está lidando! Vou lhe mostrar!- o encapuzado saltou para trás e desferiu um repentino golpe de chicote e atingiu o rosto de Télamon. Foi tão rápido que não houve tempo para defesa. Derrubado no chão pela força da chicotada, passou a mão no ferimento e o sangue quente a empapou.
- Já sofri muito mais do que isso, panaca. E eu ainda não fiz tudo que posso.
Num pulo reergueu-se e chamou sua adaga com um gesto de mãos. A lâmina, antes de ejetar-se do corpo inimigo, encheu-se de cerras e agravou a lesão. Sangue jorrou e ele urrou novamente, curvando-se tamanha a dor. Não esperava por isso.
Tendo a arma em mãos, Télamon proferiu palavras desconhecidas e ela tornou-se uma brilhante espada longa, afiadíssima, capaz até de cortar aço.
Sem mais, concentrou toda a sua força e pulou so-bre o oponente e ambos se atracaram. O encapuzado transformou seu chicote num sabre negro e lutou com toda a violência do seu espírito.
Onze aproveitou a oportunidade e se escondeu por entre os densos arbustos, levando a pobre Cindy consigo.
-Você vai ficar bem, minha amiga... – sussurrava e-le, segurando as lágrimas, diante dos olhinhos cheios d´água da cachorrinha.
O choque das lâminas causava relâmpagos em volta e estrondos que ressoavam por toda a região, a terra tremia e os ventos se agitavam.
– Uau – Onze assistia espantado. Nunca vira nada assim antes. Realmente, valeu a pena sair da cidade...
Eles se digladiavam, desferindo cortes um no outro, sangue respingava para todos os lados. Então, o dono do sabre negro emitiu um potente rugido, que destruiu o próprio disfarce em retalhos, revelando um rosto marcado por inúmeras cicatrizes, cabelos longos até os ombros, encaracolados, olhos cinzentos e cavanhaque. Télamon foi empurrado para o outro lado da clareira, tropeçando em sua capa e tombando no chão. Uma tontura sobrenatural se abateu sobre ele e o manteve sem ação, mal podendo enxergar direito.
O homem permaneceu imóvel por um longo tempo, apenas respirando com dificuldade. Enfim, centrou-se, elevou as mãos em torno de si até se encontrarem no alto de sua cabeça e baixa-las na altura do peito. Um círculo energético, criou-se em volta de seus pés, feito de filamentos negros, prateados e vermelho-sangue, a girar em espiral. Misteriosamente por longos segundos, concentrou seu olhar ao estranho que atrapalhara seus planos. Por sua vez, Télamon recuperava o equilíbrio gradativamente.
- Ora... O que pretende? – pensou, enquanto levan-tava-se lentamente, titubeante.
- Hmmm... Vejo que não sou o único a guardar la-mentosos segredos... Hehehe. Grave meu nome, você irá precisar: Xanto.
-Por que está me olhando assim? Cuidado para não se apaixonar, não faz o meu tipo. – ironizou Telámon, com um sorriso debochado na boca. – E, meu nome é Télamon, desprazer em conhecê-lo.
- Paixões, amores carnais, românticos... Hahaha! Já venci essa etapa, caro intrometido. Sou muito superior para ter esses sentimentos limitadores, que sempre mais atrapalham na jornada pelo poder. Já você... Parece que realmente precisa disso. Enxergo uma enorme carência... Tolo, baixo, inferior. É o que é.
Télamon fechou o cenho e os punhos, firmando seus pés na terra.
-Não me conhece! Nem terá essa chance! Acabo contigo aqui e agora! Aprenderá a não se meter a besta com seres indefesos!
- Pare com esse sentimentalismo. O universo não foi organizado para atender a humanidade. E sim justamente o contrário.
-Do que está falando?!
-É assunto para iniciados. Agora... Dizia que iria a-cabar comigo? Estou esperando. Pode vir te dou o prazer do primeiro ataque.
Óbvio que se tratava de uma armadilha. Contudo, que opção possuía? Então, decidiu continuar parado, somente na expectativa, mas preparado para qualquer coisa.
Qual foi sua surpresa, ao ver Onze sendo carregado de volta por uma criatura sombria, alta e encurvada, com a boca cheia de dentes visíveis, de braços longos e garras enormes.
-Urrrrg... - ele não sabia qual era a melhor alternati-va. As emoções borbulhavam de verdade pela salvação de alguém como nunca antes. O mais verdadeiro senti-mento de desejar proteger alguém brotava subitamente. Pensava que o Destino definitivamente houvesse lhe ne-gado essa comoção nessa vida.
-Me larga! Me larga! Me larga!
-Seja o que o Universo quiser!!!
Télamon juntou suas forças novamente e saltou com a espada em punhos, resplandecendo como o sol. Porém, do círculo de energia de Xanto brotaram uma verdadeira nuvem negra repleta de seres sombrios e abissais e o envolveram no ar. Eles gargalhavam, eram corpos em deterioração, carcaças, esqueletos, todos alados e ferozes, sedentos de energia vital, de sangue quente. Com suas garras e dentes afiados atacavam Télamon cruelmente. Ele tentava se defender, mas era quase impossível. Toda dor e agonia que sentira a vida inteira o assaltavam de uma vez só. Tudo que podia fazer era gritar de desespero.
Por sua vez, Xanto ordenou que soltassem Onze e resmungou antes de partiu para a sua carruagem:
-Estou satisfeito, por hora. Contudo, nos reencontraremos em breve, garoto.
O menino foi jogado no chão e a criatura trevosa se juntou às outras que investiam em Télamon.
Onze chorava abismado e paralisado de terror, até que Cindy arrastou-se para o seu lado. Ele agarrou-a num abraço e fechou os olhos.
Uma aura esverdeada surgiu dentre os dois e começou a se expandir, irradiando primeiro suaves fios luminosos, depois cada vez mais fortes. Na medida em que a cúpula de energia crescia, as criaturas eram afugentadas, praguejando contra Onze. Enfurecidas queriam ataca-los, mas não conseguiam penetrar o campo energético.
Finalmente, livre das feras trevosas, Télamon caiu inerte no chão, mal podia respirar. Estava com toda a roupa em fiapos, o corpo coberto de cortes profundos e muito sangue jorrava, empapando o solo.
-Témalon! Témalon! – Onze soltou a cachorrinha e ambos foram vê-lo. Não haviam percebido, mas Cindy tinha se recuperado. Onze o chacoalhava e ela lambia-lhe as orelhas.
-É TE-LA-MON...
O garoto sorriu ainda coberto pela intensa luz.
-Que... Que poder é esse... Agradável como um... Um abraço... Reconfortante – murmurava.
Onze não respondeu, afinal, nem ele mesmo tinha uma explicação. Simplesmente aconteceu.
Então, quando menos esperaram, as feridas do guerreiro caído haviam cicatrizado quase que completa-mente. As mais profundas tornaram-se meros arranhões.
Sem palavras, pasmo, Télamon sentiu suas forças serem revigoradas e ergueu-se com facilidade, ficando de joelhos diante do pequeno.
- Como fez isso? Incrível!
-Nã-não sei! Acho que deve ser Cyndi.
Ao falar o nome da cachorrinha, ela olhou-o surpresa.
Gradativamente, a energia começou a diminuir e e-les foram envoltos pela escuridão da noite.
-Nossa, escureceu rápido! Onde vocês moram? Vou levá-los para casa.
-Não temos casa.
-Hã? Como assim?
-Vivemos pelas ruas de Gavinus.
Télamon engoliu em seco:
-Bem... Seus pais devem estar preocupados. Eu levo vocês, preciso ir para lá mesmo.
- Não tenho pais. Apenas uma mulher cheia d filhos resolveu cuidar de mim. Mas eu não gosto dessa vida.
O homem fitou curioso o semblante sério do garoto. Estava escuro, mas os olhos adaptaram-se:
-Disse que não gosta dessa vida...
-Sim. Pedimos esmolas sempre. As pessoas não gostam de dar nada. Têm medo de nós. Eu nuca roubei nada. Os outros sim. Os filhos dela. Da Dona Laura. E tem um cara, o marido dela, sempre bêbado. Quando a gente finalmente consegue uns trocados, ele acaba com tudo nas bebidas, e fica incomodando.
O relato do pequeno Onze atingiu Télamon em cheio, que foi acometido por um forte aperto no peito.
-Ela mesma me ameaçou me abandonar uma vez, furiosa, quando retruquei com o babaca por causa das bebidas. Os filhos dela me deram uns socos.
Ele afagou a cabeça peluda de Cyndi em troca rece-beu uma lambidas carinhosas.
-Bom... Não temos muita opção. Preciso te levar de volta. Não há nada aqui para vocês. Vão passar fome e frio. Se ao menos tivesse algum parente.
- Não se preocupe. Já achamos a solução.
-Que solução?
Onze abriu um grande e ousada sorriso e respondeu:
- Ficaremos com você!!!
Télamon caiu para trás e retrucou:
-Impossível! Tá maluco, moleque?!
-Ora, por que não?!
- Nem eu tenho casa! Vivo vagando sem rumo! Vou te oferecer o que?!
-Ótimo! Preferimos andar por aí a continuar naque-las ruas de concreto! Você usa roupas legais, pode nos arranjar umas e assim andaremos combinando!
-Hahahah!Que hilário você, baixinho! Minhas rou-pas estão piores do que já eram. Sou quase um pedinte.
- Ainda assim! Né, Cyndi? Ficaremos com você e as-sunto encerrado!
Onze levantou-se decidido, colocou as mãos na cintura e cobrou:
-Muito bem, então! Para onde iremos agora? Gavinus, nem pensar! Céladon? Hmmm – ele pôs a mão no queixo – já ouvi muitas coisas boas sobre lá. Ou quem sabe... A cidade portuária de Optagonos??? Seria tão le-gal viajar de barco! Não é, Cyndi???
A cachorrinha deu um animado latido. Télamon apenas assistia tudo, espantado, com os olhos esbugalhados.