O poeta do botequim
Não tinha nome, era o poeta. Sempre o chamei assim e acho que todos os seus numerosos amigos também o chamavam. Poeta.... Tinha uma boa voz e arranhava, mas arranhava mesmo, um violão.
Como todo bom poeta, adorava um botequim... E tanto adorava que tinha um ...
Cidade praiana, fim de temporada, os moradores respiravam e se preparavam para o próximo verão quando então tudo renascia e se podia faturar algum com os turistas. Os naturais saiam então das tocas e passavam a levar uma vida normal, a sua própria....
Sexta feira à noite, os botecos da orla abriam para o papo do fim de semana e algum consumo, quando o pessoal ensaiava seus acordes para aprimorar e esperar o verão. Então o poeta abria o boteco cedo, e ficava por ali cocando os poucos fregueses e engatando um papo sem maiores compromissos.
Fomos chegando numa dessas noites bem timidamente, tínhamos ido à telefônica quando ouvimos um som de violão ao longe. Apuramos o ouvido e seguimos na direção... Dobrando uma esquina, batemos de cara com o boteco... Mesas de madeira espalhadas embaixo de umas amendoeiras, uma garota cantando MPB e um cara sentado em uma mesa escrevendo. Raros fregueses espalhados pelas mesas olhando a garota e tomando cerveja. Nos sentimos tão em evidencia como um dedo em ataduras , todos nos olharam, a garota quase parou de cantar enquanto nos acomodávamos. O cara que estava sentado escrevendo olhou em nossa direção, sorriu e veio até a nossa mesa.
- Boa noite, vocês não são daqui?
- Não, respondemos, estamos em férias e gostamos de curtir o litoral fora da temporada.
- Que legal, sejam muito benvindos, a Celinha vai cantar alguma coisa pra vocês.
- Podem pedir. O que vão beber?
A partir daí, ficamos freqüentadores diários e começamos a conhecer as nuances da cidade e entrar na vida do poeta e da Celinha, a cantora.
Cada um tinha uma vida e uma história para contar...
Aos poucos fomos compondo a história do poeta, de conversa em conversa, ele foi se abrindo. Ninguém resiste a um papo de botequim, vai desfiando a vida sem sentir e o nosso novo amigo não fugia à regra...
Carioca de origem, suburbano de coração desses que acham Madureira o maior mercado do mundo e admite que o centro do universo fica entre a Pavuna e o Meyer. Como um autêntico zona norte, foi dar com os costados naquela cidadezinha praiana?
Solteirão, morava com a mãe no subúrbio do Rio e trabalhava numa repartição no centro.. Com a morte da mãe, passou a morar sozinho, mas continuava com a mesma rotina. Um dia entrou, sentou no primeiro banco, perto da porta, e ficou olhando os lugares passarem, a medida que o ônibus seguia para o centro. Eis que numa parada qualquer, subiram dois caras e logo anunciaram o assalto. Como já é costume, todo mundo foi tirando o relógio, o dinheiro das carteiras e entregando a um dos ladrões enquanto o outro do final do ônibus controlava o cobrador e os passageiros. A rotina de um assalto tranqüilo...
O poeta seguiu direitinho a regra e tirou o relógio e o pouco dinheiro da carteira e entregou ao bandido. O cara olhou para o relógio barato e as duas notas de dez e falou pro comparsa: - Dá um teco nesse negão que ele tá escondendo coisa...
O suor escorria da sua testa, a respiração ficou em suspenso, toda sua vida desfilou na sua memória enquanto o bandido que controlava o trocador saiu lá de traz do ônibus e foi com a arma engatilhada para dar o teco... Sem ação, só esperava o final de tudo quando o outro comparsa gritou: - iiih sujou, vamos correr que lá vem os home... Os dois pularam do ônibus em movimento mesmo e se mandaram...
Dali em diante, não encontrou mais paz.. O pensamento dominante era que por pura casualidade estava vivo. A sensação de raiva e frustração de todo assaltado bateu forte e quando entrou na repartição uns 3 dias depois, quando criou coragem para sair à rua e andar no mesmo ônibus outra vez, parecia que estava em outro planeta. Não era mais o seu ambiente, era outro mundo.. Não deu outra, pediu demissão e saiu para procurar um novo lugar para viver, longe de cidade grande, de violência de assaltos, de tudo. O importante era apagar da cabeça a frase fatídica: “dá um teco nesse negão que ele tá escondendo coisa”. Na rodoviária lembrou da mãe que falou uma vez sobre umas férias em uma cidade, no litoral... Não pensou duas vezes, comprou passagem pra cidade e quando chegou lá, sentiu novamente que estava no seu mundo. Daí para começar a arranjar trabalho e abrir o boteco foi rápido, virou o poeta e voltou à vida.
Fechamos a conta e voltamos para o apartamento de temporada, Celinha fica pra depois, é uma outra história...